Literatura,

Enorme e delicado

A prosa de Zé Almino não é magra como a de Graciliano, mas elegante e equilibrada; sabe espelhar o gordo e o guenzo sem entregar-se a eles

15nov2018 | Edição #9 mar.2018

Os textos reunidos por José Almino de Alencar no livro cujo título — Gordos, magros e guenzos — traz toda uma definição da perspectiva regional, estética e pessoal do autor (e é um dos pontos que me ligam, para honra minha, diretamente ao seu imaginário) são peças de refinamento e amadurecimento da nossa sensibilidade, da nossa civilidade e das nossas letras. A frase retorcida (embora não exatamente gorda) com que abri este comentário é um exemplo do que não se encontra na prosa de Zé Almino. Esta, de seu lado, não é propriamente magra, como o são a de Graciliano ou a de Hemingway, a de Zé Rubem Fonseca ou a da poesia de João Cabral. A prosa de Zé Almino é elegante e equilibrada, entende o gordo e o guenzo mas, sempre perto da magreza, sabe espelhá-los sem entregar-se a eles. De todo modo, não é retorcida. 

Sou de um Brasil que não acreditava no mundo exterior. Zé foi o meu primeiro guia quando, sem entender, me vi no grande mundo, fora de casa: ele era, de repente, ao mesmo tempo a casa e o mundo — e com isso me mostrava a possível realidade extramuros. Isso se deu na dimensão física, anedótica. E se expandiu depois nas formas intelectual e estética. Zé tem sido, desde então, um dos meus mestres, um dos meus nortes. Ele sinaliza, aponta, faz rápidos contrapesos, surpreende com alguma informação crucial, ensina. Ainda na anedota de nossas vidas. No livro da reunião de escritos seus, isso acontece por meio de peças artísticas despretensiosas e deslumbrantes. Ali há de tudo o que importa. A menção a Machado de Assis vem com a vivência entranhada de sua literatura; a citação de Paulo Mendes Campos surge como reeleição do autor mineiro ao Olimpo da nossa inteligência; o anúncio de Tupan Sete experimenta o mistério do quase inexistente; a lembrança da frase de Valéry a respeito da superioridade da poesia sobre a prosa ecoa a vida do Recife, de Paris, de Nova York, cidades que têm suas prosas sempre poéticas na solidão do exilado. 

Tudo é tão de Zé quanto, como ele mesmo diz sem usar estas palavras, só um poema pode ser de alguém. Nada que não traga os remansos de sotaques da origem ou de adoção. Lê-se aí a história da língua no Brasil, a história do homem brasileiro, a história desse homem peculiar que conta a história. As marcas do afastamento e do reencontro com o português brasileiro reaparecem nas cenas reproduzidas pelo narrador, nas atraentes irregularidades de pontuação do argumentador, na dor das suas discretas confissões emocionais.

A conversa de Genet com um militante da esquerda brasileira surge como um refletor sobre a beleza possível do Cristo do Corcovado, beleza cuja possibilidade assombra por ter-se mostrado anterior ao pensamento de quem comenta. Num caso assim, Zé exibe um humor, nada infrequente entre pernambucanos, que sabe ser breve e fundo, sem esconder o sofrimento que lhe possa estar por trás. Cícero Dias! Os despachos de Machado, onde o escritor aparece em seu papel de funcionário público, a exercer julgamento de caso envolvendo questões da escravidão, mas não é explicitamente julgado pelo narrador/pesquisador.

Zé foi o meu primeiro guia quando, sem entender, me vi no grande mundo, fora de casa: ele era, ao mesmo tempo, a casa e o mundo

Os belos versos de Alceu Valença derramam-se sobre a inflação em febre branda. A “unánime noche” de Borges, cuja incapacidade de ser compreendida por um anglófono serviu (com a ajuda da reação do próprio Borges) a V. S. Naipaul para acabar de desqualificar o escritor argentino, ressurge em Zé Almino como começo de conversa para refletir sobre a poesia que subjaz a toda prosa, abstendo-se de criticar a atitude imperial anglo-saxã que despercebeu ser essa bela frase de abertura o momento em que Borges, vivenciando a língua espanhola em profundidade, está mais perto do por ele tão desprezado Lorca do que nunca.

Zé me ensinou a admirar Naipaul mas segue gostando mais dele do que eu. Já sua abertura para o comentário de Machado de Assis sobre o aforismo do Barão Louis, que é o pedido “Dai-me boa política que eu vos darei boas finanças”, é talvez o exemplo mais “gordo” de sua escrita — mas atinge as figuras ainda atuais da política brasileira com a ferocidade que eu gostaria de poder cultivar bem. O retrato de seu pai, Miguel Arraes, deputado desarmado na Assembleia pernambucana, explica o ponto de vista político que pode permanecer inabalado nesse cético nada desprovido de doçura. Captar esse ângulo é o que nos faz entender com propriedade a distinção que ele faz entre o golpe de 1964 e o movimento que resultou no impeachment de Dilma Rousseff: difícil encontrar outro arrazoado brasileiro sobre esse caso que seja tão abrangente e razoável — e tão claro. 

A oração terrível pela alma de Rubens Paiva, na aproximação do texto do algoz ao caso brutal de Gilles de Rais, abre o mundo do historiador minucioso e sucinto: o texto sobre os suicídios de Vargas e de Allende autopsia os dois ex-presidentes, Joaquim Nabuco e o Segundo Reinado. É com essas lentes que Lima Barreto é retratado, numa crônica que não é a única que nos leva a chorar. Faz com que captemos o essencial da louvação a Mário de Andrade como intelectual público. Ou a da grandeza poética de Vinicius. Ou o século curto e a formação de Miguel.

Quando Zé Almino assume um tom ensaístico e quase crítico, a grandeza de seu intelecto se reafirma num nível que leva o leitor a ver confirmado todo o coerente mundo mental do autor, tão imenso quanto discreto, que tinha sido adivinhado nas crônicas. O Machado que fora flagrado em ação no serviço público é mensurado histórica e sociologicamente em leitura do estudo sobre ele feito por Reginald Daniel, numa sugestão de mirada para a questão racial brasileira que nos induz a pensar mais, ler mais, enfrentar melhor o dificílimo assunto. 

Depois, olhando com carinho a figura de Ariano Suassuna, que vai de esboço de antagonista a vizinho de casa e de alma de seu pai, Zé põe a nu a estrutura viva dos mitos que vêm se fazendo necessários para que possamos interpretar e sofrer o Brasil. E tudo o que ele diz na resenha do livro de Ana Pessoa a respeito da importância das miúdas lembranças vivenciais para o entendimento da História se aplica ao artigo, pessoal e sensível, com que ele próprio, recordando seu encontro com Francisco de Assis Barbosa, fecha o volume. Quem lê tudo, sai engrandecido. E grato. 

Quem escreveu esse texto

Caetano Veloso

Músico, é autor de Verdade tropical (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.