Literatura,

Direito à ficção

Camila Sosa Villada provoca novos usos das palavras para naturalizar encontros e identidades

09dez2022 | Edição #65

A imaginação é um território em disputa e Camila Sosa Villada reivindica o direito de ocupá-lo. No Brasil para a Flip, a argentina defendeu as possibilidades de criar, inventar, colocar em palavras também o que não conheceu. “Tenho o direito de fazer ficção, não preciso escrever só sobre a experiência de travesti, só sobre a minha própria tragédia”, disse em uma das mesas da qual participou. Em outro momento, disse narrar com frequência o que dá errado, sem brandura, porque é o que experimentou: “Não posso evitar escrever sobre a violência, porque escrevo coisas que vivi.”


Sou uma tola por te querer, de Camila Sosa Villada, é como um pêndulo que toca ora um caminho, ora outro

Seu novo livro, Sou uma tola por te querer, é como um pêndulo que toca ora um caminho, ora outro. Os nove contos visitam narrativas tão diversas quanto opulentas nas estratégias para contar histórias. O texto inicial está abraçado pela autoficção, inspirado em vivências autobiográficas, segundo a própria autora. É a narração em primeira pessoa de uma travesti que olha para o passado em perspectiva, comparando as promessas que se fizeram ao presente que se concretizou.

A narradora parte de uma viagem dos pais ao santuário de Deolinda Correa, a Defunta Correa, uma miraculosa santa local, para implorar por um emprego melhor para a filha, prostituta. O que completa a história é o episódio que abre a porta para outro trabalho: a montagem de uma peça de teatro na qual conta como seus pais e seu povoado receberam sua transexualidade. Descreve um experimento artístico radical, no qual costura o perfil biográfico com personagens das peças de Federico García Lorca, autor espanhol que semeou críticas ao patriarcado, e termina com um nu frontal da personagem. “Três meses depois, a filha travesti de Don Sosa e La Grace, ou seja, eu — na escrita é inútil disfarçar uma primeira pessoa, pois os escritos começam a adoecer a partir de três ou quatro parágrafos —, estreava Carnes Tolendas. Porque além de gostar de ser puta, também gostava de ser travesti.”

Nesse primeiro conto, Villada resgata elementos marcantes de seu último livro, O parque das irmãs magníficas. A escritora inclui, aliás, uma referência direta ao romance, sobre um grupo de travestis que se prostitui no Parque Sarmiento, em Córdoba, e ali constrói afetos e afirma sua identidade. Na nova história ela também aposta em figuras da cultura popular, escolhe palavras sem pompa, se aproveita da sabedoria da oralidade e transcende as experiências materiais, abrindo passagem para acontecimentos mágicos, para a “ficção científica pobre, talvez um pouco futurista” que diz fazer.

Violência fundante

Se em O parque o extraordinário estava na capacidade de sobreviver, neste conto, como em outros do livro, o fantástico é extrapolar a possibilidade de estar viva e ter as ferramentas para se narrar. Em Sou uma tola, Villada avança no enfrentamento da violência que aparece na primeira obra, extrapolando a concretude das agressões físicas e do apagamento da existência para afrontar a violência da linguagem, talvez a violência fundante.

As personagens dos contos estão, de formas diferentes, rompendo silêncios, pensando o sentido das palavras e se apropriando delas. Não necessariamente dando nomes a si mesmas, mas atribuindo nomes ao outro, à paisagem, ao mundo, e brincando com as letras, enganando o leitor, camuflando vivências sob palavras enganosas. Está no verbo a capacidade de lembrar, de projetar e de inventar. Seja uma vítima de uma inquisição mexicana, seja uma menina angustiada com a cor de sua pele, seja uma mulher que descobre no posto de namorada de aluguel um ofício lucrativo, seja uma travesti que vira amiga de Billie Holiday.

Está no verbo a capacidade de lembrar, de projetar e de inventar

É uma canção entoada pela luminar do jazz que nomeia o conto que intitula o livro. María, a narradora, e a amiga Ava estão em uma boca de fumo do Harlem, bêbadas de bourbon clandestino, jogadas em um sofá velho em suas roupas remendadas, quando uma voz familiar chega com alvoroço. “Era Billie Holiday.” Precedida por Louis Armstrong, a dama de voz rouca sobe a escada cambaleante, se enrosca no vestido fino que traja e não se estrumbica no chão porque María a salva em um pulo, como se teletransportada.

A narradora é a heroína da cantora mais de uma vez, inclusive porque o Armstrong gentil e elegante do início se revela um grande canalha, agressor violento. A cumplicidade que floresce desse encontro mistura algo de amizade e algo de erotismo. “Trouxeram para mim seu penúltimo disco, Lady in satin, produzido inteiramente com cordas. É meu disco preferido, direi isso por toda a eternidade. Tinha uma dedicatória: ‘María, sou uma tola por te querer. Billie’. Um beijo estampado com batom cor de terra.”

Elas transitam entre ambientes simplórios, degradados até, que se opõem à luxuosa aparência de Holiday. Há um jogo curioso entre as duas personagens, ambas com preenchimentos internos e máscaras públicas dissonantes. Holiday é a dama impecável e refinada em ruínas como indivíduo, María é a travesti incauta em ascensão como dona da própria história — e da história das outras. A personagem, saberemos mais tarde, está escrevendo e narra com muita naturalidade. Usa expressões forjadas na comunidade travesti, traduzidas para o pajubá brasileiro. Há momentos em que a narradora-personagem e a escritora em seu exercício narrativo se confundem na afirmação de uma linguagem que carregue potência e afirmação. “Me interessa travestir a literatura”, disse Villada também na Flip.

O conto central do livro autoriza novos arranjos entre as figuras históricas; se permite uma fantasia libertadora. Naturaliza o encontro de María com gente de todo tipo e a promove a heroína perene, que intervém por outras mulheres, salvando-as de seus algozes e permanecendo para contar suas histórias. A prerrogativa de inventar que María põe em prática é estendida a várias outras protagonistas do livro e o resultado são histórias que nos provocam a conhecer melhor as palavras e subverter seu uso.

Villada reconhece o poder da palavra e abusa sem medo do potencial fabular da linguagem

Em uma entrevista recente ao podcast Mano a Mano, a cantora Linn da Quebrada disse não querer falar sobre o Brasil ser o país que mais mata travestis, porque reconstrói essa violência cada vez que a verbaliza; reivindicou a possibilidade de ficcionar. “Quero inventar histórias de que o Brasil é o país que mais forma travestis astronautas, travestis cantoras. A gente vai criando conforme vai dizendo, esse é o perigo da palavra. A palavra como feitiço.”

Villada reconhece esse poder. E abusa sem medo do potencial fabular da linguagem. Ainda que também coloque no papel a experiência de uma travesti latino-americana, se apropria de cada letra para nos contar histórias que nos levam a contos deste e de outros mundos. “A única ferramenta que tenho em mãos para dizer tudo o que quero dizer é o delírio.”

Quem escreveu esse texto

Gabriela Mayer

Jornalista e crítica literária, criou o podcast Põe na Estante.

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.