Literatura,

Assombrações da era pós-colonial

Novo romance de Agualusa usa a reflexão histórica sobre a decadência moral da elite angolana como tear dos pesadelos de seus personagens

15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Transposição das distâncias e diminuição da separação são desejos que se realizam fartamente n’A sociedade dos sonhadores involuntários. A nova trama de Agualusa usa a reflexão histórica sobre a independência de Angola e a mórbida decadência moral de sua elite governante como tear dos sonhos e pesadelos íntimos de vários personagens memoráveis, alguns esculpidos com minúcia de artesão, outros esboçados com precisão cirúrgica entre o real e a imaginação.

O núcleo factual da história são os fatos desencadeados, em junho de 2015, com a prisão de catorze jovens revolucionários angolanos conhecidos como revus, entre os quais o rapper Luaty Beirão, filho de um histórico militante do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), no poder desde 1975. No livro, os ativistas são representados pelos “sete magníficos”, encarnações da coragem utópica e desobediência civil que só os muito jovens conseguem viver plenamente. Um dos revus é a selvagem estudante Karinguiri, filha de Daniel Benchimol, jornalista progressista mas acomodado que alterna a narração com seu amigo Hossi, velho militar com terríveis traumas de guerra e tio de outro dos revus presos, Sabino Noé Kaley. Decididos a dobrar o regime, os revus iniciam uma greve de fome, e o tirano lava as mãos.

Obrigados a romper sua paralisia diante da iminência das mortes por inanição, Daniel e Hossi sofrem remorsos antigos e divergem visceralmente, exprimindo em seu conflito a crítica tanto dos intelectuais boêmios que muito falam e pouco fazem (Daniel) quanto dos combatentes empedernidos que agem em segredo e violentamente sem pensar nas consequências (Hossi). Além e acima dessas posições, os revus vivenciam na própria pele seu radical pacifismo. É no cruzamento desses pontos de vista tão diferentes que quatro grandes histórias de amor são contadas através de lembranças, cartas, telefonemas, poemas e conversas.

A primeira história é a de um amor que morreu. Daniel e a ex-esposa Lucrécia geraram Karinguiri, mas depois a relação se deteriorou e veio a separação litigiosa entre o jornalista da elite intelectual e a legítima filha da elite financeira. Um divórcio de antagonismo tão massacrante que faz Daniel praguejar contra o amor. “Todas as mulheres são uma armadilha.” A decepção do casamento terminado de Daniel e Lucrécia é o fim de um sonho da juventude, reverso envelhecido do relacionamento cheio de nobreza e entusiasmo do casal Fradique Mendes e Ana Olímpia em Nação crioula. Unidos apenas pela equidistância do povo, pai e mãe perdem a filha de vista e só voltam a enxergá-la bem depois, quando sua confrontação do regime a leva ao cárcere.

A segunda história é um amor perdido por Hossi numa bizarra sequência de eventos ocorridos 18 anos antes. Depois de viver as atrocidades do MPLA e da inimiga Unita, perder mulher e filhos, passar a aparecer nos sonhos de pessoas que nem o conhecem e ser acusado de quimbandeiro, Hossi foi levado a um sanatório psiquiátrico em Cuba para tratar sua memória avariada, “cheia de buracos”, enquanto seu caso era investigado pelo serviço de inteligência. A repetição dos sonhos desconcertantes acaba tornando impossível a permanência de Hossi no hospital, e ele é relocado para um prédio residencial onde precisa viver escondido. Mesmo vigiado, Hossi acaba redescobrindo o mais puro prazer de viver ao conhecer Ava, uma provocante jovem que vive no apartamento ao lado. A partida abrupta deixa em Hossi uma cicatriz mais profunda do que a causada por qualquer estilhaço ou bala, uma dor latente que é puro traum, sonho, trauma.

A terceira história de amor é o encontro mágico entre Daniel e Moira, uma artista plástica moçambicana tão viva, sábia e bela que faz renascer o menino apaixonado que Daniel foi um dia e que passa a imaginá-la com volúpia e apaziguamento. Ela responde: “Recebi os teus poemas. Não sou a pessoa que estás inventando neles (inventamos sempre as pessoas que amamos). É mais complicado: sou uma pessoa que não poderias inventar. Estou além da tua imaginação. No entanto, gostei dos poemas. Gostei de me sentir, por instantes, essa outra mulher que te inspirou”. O namoro que começa por acaso se constrói fatalmente em grande amor: “Agrada-me a ideia de que te recordes de uma pessoa que eu ainda não sou. Olho-me nos teus olhos, como num espelho mágico, e vejo quem serei”.

O Brasil retratado por Agualusa é cheio de possibilidades, mas também odioso e triste. Não é difícil ler presságios de repressão e retrocesso

A quarta história de amor é a religação emocionante entre Daniel e Karinguiri, evidente nas lágrimas consternadas do pai e na profunda certeza da filha de que terá todo seu apoio se for bem compreendida. Entre a reafirmação do amor filial por Karinguiri e o renascimento do amor erótico com Moira, Daniel ascende, se acende e afinal afirma tanto o apego seguro de que todo filho necessita quanto a utopia de sonhar uma sociedade digna de receber novas vidas. É na relação que crescemos, é preciso “aprender com os filhos a fazer coragem”.

Como se fora pouco, no meio desse redemoinho, Moira e o neurocientista brasileiro Hélio de Castro passam a colaborar na filmagem de sonhos, através de uma versão terceiro-mundista eletroencefalográfica high-tech de complicados experimentos de decodificação de padrões neurais por ressonância magnética funcional. Essa máquina de ler sonhos desempenha um papel central na luta contra o carcomido José Eduardo dos Santos, quase eterno presidente de Angola, principal responsável pela supressão de liberdades, violência estatal e oligarquia familiar que marcaram seu interminável governo. Parasitas estatais, medíocres profissionais e assassinos protocolares são confrontados pela insurreição da juventude. Ecos da Praça Tahir, os revus são o levante da geração pós-internet: já ninguém está ilhado, a informação circula livremente e os diferentes têm o mesmo sonho: o fim das tiranias.

Prenhe de urgência histórica, A sociedade dos sonhadores involuntários é narrativa africana e também diaspórica, ao envolver na mesma amarração angolanos, moçambicanos, cubanos, congoleses, mineiros, baianos, pernambucanos e potiguares. Pessoas que sabem que nasceram num país do Terceiro Mundo por terem “mais medo dos polícias do que dos ladrões”. Vencidas a tristeza e a impotência diante do regime, Daniel se radicaliza num ímpeto incontrolável, verdadeira eclosão do inconsciente. “O sonho emergiu de chofre no meu espírito, brilhante e inteiro, como um enorme peixe prateado estilhaçando o liso espelho das águas.” 

Memorialização arrepiante de pesadelos recentes, o livro traz para o público brasileiro eventos como a batalha de Mavinga em 1986, maior confrontação militar em território africano desde a Segunda Guerra: “A partir de certa altura deixamos de saber por que nos matávamos. A gente matava-se era por hábito”.

Ao natural o homem é mau? O antídoto do desamor é o amor. Não existe redenção na eliminação do adversário. “O que se alcança pela violência permanece envenenado pela violência.” É o dilema dos 99% em todo o planeta, aprendizado histórico da Bastilha e dos sovietes: pela morte, a revolução não vencerá. É preciso superar é o instinto de cuidar só dos entes próximos e predar os outros.

Essa reflexão tem pertinência direta no Brasil de 2017. O país retratado por Agualusa é cheio de possibilidades, mas também odioso e triste. Não é difícil ler presságios de repressão, retrocesso e falsas notícias. O medo de acordar no sonho do torturador tem afinidade inegável com a campanha de Bolsonaro a presidente.

Aqui, acolá e em toda parte, a saída desse pesadelo é despertar da submissão e sonhar a plenitude do livre-arbítrio, diria o branco bantu do Huambo, que foi correr mundo e criar vida na Ilha de Moçambique, com sua companheira impossível de sonhar, mas verdadeira de viver.

Quem escreveu esse texto

Sidarta Ribeiro

Neurocientista do Instituto do Cérebro da UFRN, escreveu Limiar: uma década entre o cérebro e a mente (Vieira & Lent).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.