Literatura infantojuvenil,

Fevereiro em azul e branco

Livro ilustrado coloca na rua as cores e os movimentos dos Filhos de Gandhy, um dos mais antigos afoxés do Carnaval baiano

17fev2023

Em fevereiro a casa se transforma, a cozinha se encanta, a festa desce do armário, as cores azul e branca, o carinho e a brincadeira ocupam todos os espaços. O menino é príncipe porque seu pai é rei e ele ganha da avó uma toalha coroando sua cabeça – atos singelos traduzidos com perfeição na voz de sereia da mãe: “é tradição, querido, tradição!”.

É assim que o pequeno narrador de Fevereiro descreve os preparativos para a saída da família no bloco Filhos de Gandhy, um dos maiores e mais antigos afoxés do Carnaval baiano. A perspectiva infantil da narrativa prioriza percepções peculiares sobre as metamorfoses vividas no período carnavalesco, destacando sensações e sentimentos que têm origem na singularidade do olhar infantil e nas tradições culturais das religiões de matriz africana.

Não compreender certas palavras ditas pelos mais velhos leva os olhos do menino a mirar o infinito, seja diante do mar propriamente ou do mar de gente que ocupa as ruas de Salvador durante o Carnaval. Nós, leitores, vamos com ele nessa descoberta festiva e somos guiados por traços e cores que compõem, cuidadosamente, as imagens criadas por Carol Fernandes.

O livro contém uma carta escrita pela autora a Gilberto Gil, integrante do bloco

Escrito e ilustrado pela artista mineira, autora de Se eu fosse uma casa (Tuya Edições), Coração do mar (Crivo Editorial) e Mulheres que guardo em mim (publicação independente), Fevereiro é o segundo livro em que ela assina texto e imagens. Carol trabalhou por anos como professora de educação infantil em Belo Horizonte e faz questão de dizer o quanto aprendeu e ainda aprende com as crianças. Talvez more aí a proximidade da autora com o ponto de vista infantil. Há um equilíbrio convidativo e acolhedor entre informação textual e visual: o texto é conciso e metonímico e as imagens ampliam a narrativa desfilando sutilezas. As escolhas editoriais, incluindo o projeto gráfico, convergem para uma estada demorada do leitor junto aos personagens e paisagens.

Há, efetivamente, presença em todos os sentidos. Presença da tinta branca sobre o pardo do papel, ressaltando tecidos, adereços, ondas, espumas. Presença do par azul e branco, cores tradicionais das vestimentas e guias peroladas dos mais de 10 mil integrantes do bloco Filhos de Gandhy, cores dos orixás Ogum e Oxalá, cores do céu e do mar, cores da saia encantada de peixes que a mãe com voz de sereia veste.

Mulheres e crianças

Presença forte de mulheres e crianças, sobretudo nas imagens, ainda que tradicionalmente esse bloco, criado em fevereiro de 1949 por estivadores, ainda seja exclusivo para homens. Vale destacar que em 1979 foi criado o bloco Filhas de Gandhy, valorizando a ancestralidade feminina nos festejos e nas ações sociais locais. Há presença da infância no choro que vem com a interdição, no colo regado a cantiga antiga e na incompreensão da palavra despertando para outros sentidos.

Há, ainda, forte presença de elementos próprios das religiões de matriz africana, como o padê abrindo o cortejo (obrigações religiosas praticadas em oferenda aos orixás que protegem e abrem caminhos), a interação respeitosa entre gerações, observada na relação terna do menino com seus tios, pais e avós, e, por fim, a música e a dança ritualizando manifestações culturais coletivas. Essas presenças todas intensificam a chamada construção de sentidos que ocorre durante a leitura de um livro e que em Fevereiro se amplifica sinestesicamente no cheiro de lavanda que exala do cortejo, no respingar das espumas do mar, no ijexá que soa do atabaque e do agogô, nas pinceladas grossas que desenham as vestes brancas e azuis, de onde pipocam vistas oceânicas.

No texto anexo às páginas finais do livro, uma carta escrita pela autora ao compositor baiano Gilberto Gil, integrante do Filhos de Gandhy, agrega nova camada à experiência poética oferecida pela leitura. Diz a autora, em determinado trecho da carta: “quando enfim pude associar as suas poesias e os seus relatos às minhas lembranças de afeto, surgiu o desejo de criar este livro”. Afeto e admiração, memória e esperança são estopim para a criação de Fevereiro, axé e cordão-guia para seus leitores.

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).