Semear na aridez

Literatura infantojuvenil, Os Melhores Livros de 2024,

Semear na aridez

Chupim confirma marca da ficção de Itamar Vieira Junior, na qual crítica social contundente se une à perspectiva poética de personagens

01dez2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88 dez
Trabalhadores de ‘Chupim’ nas ilustrações de Manuela Navas (Divulgação)

Em seu primeiro livro infantil, o premiado Itamar Vieira Junior puxa um pequeno fio de seu best-seller Torto arado (Todavia, 2019), onde o pássaro chupim é mencionado, para levar a crítica social, que perpassa toda a sua obra, às crianças. Em um texto simples, claro e poético, suave como deve ser para ouvidos infantis, Itamar nos conduz pelas mãos ao universo que lhe é caro, aquele da desigualdade social e do duro e precário trabalho nas plantações. As lindas pinturas a óleo de Manuela Navas, que enchem as páginas, integram-se de tal modo ao texto que as letras parecem se misturar às imagens, permitindo ao leitor habitar a paisagem e sentir o calor e o movimento dos corpos dos trabalhadores.

Julim, o menino em torno do qual gira a história, antes do raiar do dia é despertado em sua rede por seu pai para, juntamente com seus irmãos mais velhos, acompanhá-lo ao campo: “Menino, menino, levanta”. A presença das crianças é solicitada pelo chefe dos trabalhadores, para que em sua correria espantem os pássaros chupim, que em revoada tentam comer do arroz que está sendo colhido.

De penas preto-azuladas, bico longo, fino e afiado, o chupim não seria muito diferente de outras espécies de sua família taxonômica, que inclui o japu, se não fosse por uma característica muito peculiar: deixa os seus ovos em ninhos de pássaros de outras espécies, dentre eles o tico-tico, para que esses possam chocá-los e alimentar seus filhotes. É por isso conhecido como “aproveitador”, ou, como havia escrito Itamar em Torto arado, dando voz aos personagens, “matreiro e preguiçoso, gosta de coisa pronta, não batalha pelo seu grão”. 

Julim e os chupim são um só, menino-pássaro, capaz de fazer da precariedade da vida uma dança

Julim não se conforma com a avareza dos adultos, que se recusam a partilhar aquela fartura de grãos. Por isso, enquanto as demais crianças correm e gritam mexendo com vigor as suas varas de madeira, faz movimentos lentos para não assustar os chupim. Esse menino alegre e sonhador, em sua empatia com os pássaros, parece ser o único a entender a forte semelhança entre a vida daqueles agricultores, sem terra e sem casa, dependentes da comida e pouso dos patrões, e os pássaros que sobrevoam a plantação.

Os adultos olham para baixo, para o arroz que devem colher, mas Julim dirige seu olhar ao céu, para o lindo balé dos corpos dos pássaros negros como o seu. Nessa contemplação em meio aos risos da criançada, ele e os chupim são um só, menino-pássaro, capaz de fazer da precariedade da vida uma dança.

Ilustração de Manuela Navas

O livro traz assim a marca típica do universo ficcional de Itamar Viera Junior: o sonho e a magia que brotam no solo aparentemente árido dos corpos exaustos e explorados dos trabalhadores sem terra. Ao terminar cada uma das obras do autor, vejo-me repetidamente encantada com a sua capacidade de fazer conviver a crítica social crua e contundente com a perspectiva poética e alegre das pessoas que tendemos a imaginar brutalizadas por suas condições de vida. Chupim, sua narrativa mais curta, não deve nada aos demais. Ao contrário, parece-me ser a cristalização dessa capacidade, uma espécie de caricatura (no bom sentido) de um estilo único que vem encantando milhares de leitores.

Coexistência

São as entrelinhas, entretanto, que trazem a mensagem mais original do livro. Os hábitos do pássaro, que confia os seus filhotes a outras espécies, trazem à tona o tema das relações multiespécies, na forma da dependência, cada vez mais conhecida pela ciência, entre os seres que habitam o planeta. E se, ao invés de explorador e preguiçoso, víssemos o chupim como um ser que fundamenta a sua vida
na confiança nos outros, justamente naqueles que são diferentes dele?

É a ótica do trabalho e da produção, que no mundo capitalista é levada dos opressores aos oprimidos, que faz um adjetivo como “aproveitador” soar tão natural aos nossos ouvidos, ao mesmo tempo que conceitos como coexistência e coabitação parecem ter que ficar escondidos em rincões habitados por ecologistas e ativistas sonhadores.

Ilustração de Manuela Navas

Chupim, o pássaro, carrega em seu bico muito mais que sementes de arroz: a ideia de que a colaboração entre espécies é essencial para a vida. Julim sabia disso, e quis dar arroz aos pássaros. Estes, por sua vez, ofereceram a ele um campo de arroz semeado e pujante. Juntamente com outras crianças, os Paulos, Pietros, Rodrigos, Marias, Floras, Belas, e seu olhar encantado para o mundo, Julim nos mostra a importância de nos aliarmos aos demais seres que povoam este planeta tão maltratado.

Quem escreveu esse texto

Aparecida Vilaça

Professora de antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora Ficções amazônicas (Todavia, 2022).

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Semear na aridez”

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