As mediadoras de clubes de leitura Janine Durand e Luciana Gerbovic (Divulgação)

Bagagem Literária, Livro e Leitura,

Rodas vivas

Dupla de mediadoras de clubes de leitura mostra o caráter revolucionário de encontros em torno dos livros

05fev2025

Iniciativas que promovem a equidade e a horizontalidade, por menores que sejam, afetam paradigmas de convivência, sobretudo quando sustentadas pelo desejo de estar junto. É o caso dos clubes de leitura, prática social cada vez mais difundida em espaços educativos formais e não formais — que vão desde escolas, bibliotecas e livrarias até penitenciárias.

Em tempos de grandes investimentos na despolitização do debate público e na defesa do individualismo como forma de sobrevivência, apostar no que podemos chamar de pequenas revoluções é, antes de tudo, uma afirmação de coragem. Quando essa aposta se traduz em ações aparentemente simples, como se reunir em roda para conversar sobre obras literárias, a coragem pode parecer ingênua. Mas não é.

Como ensinam Foucault, Deleuze e Guattari, micropolíticas não se contrapõem nem pretendem substituir a macropolítica. Sobre isso também nos alertam Paulo Freire (“toda educação é política”) e bell hooks (em Ensinando pensamento crítico), outras referências presentes em Clubes de leitura: uma aposta nas pequenas revoluções, de Janine Durand e Luciana Gerbovic.

Um critério importante é não fugir dos temas polêmicos disparados pela leitura de algumas obras

Ambas autoras acumulam vasta experiência como criadoras, coordenadoras e mediadoras de clubes de leitura, realizados em contextos diversos como o do programa Remição em Rede, que reduz a pena de pessoas encarceradas por meio da leitura. Os relatos como mediadoras desses clubes se revezam ao longo do livro com a apresentação conceitual da prática, o que torna o texto dialógico e polifônico, trazendo vozes e perspectivas de leitoras diversas — em nota, as autoras avisam que optaram por manter a flexão do gênero no feminino, por considerarem que a língua é viva, em constante transformação, e por desejarem presentear as leitoras com sentimentos de pertencimento e representação durante a leitura do livro.

No primeiro capítulo, explica-se por que a literatura ocupa um lugar central nos clubes de leitura:

A literatura não dá respostas e certezas, pelo contrário: a literatura, fruto da fabulação, nos coloca ainda mais perguntas. […] As certezas nos fecham em um universo que já conhecemos. As perguntas abrem, ampliam. E este é o propósito dos clubes de leitura: abrir horizontes para ampliar visões de mundo.

Partindo dessa premissa, as autoras indicam alguns critérios para seleção das obras literárias que costumam funcionar bem nos clubes. O primeiro deles é uma certa predisposição necessária aos mediadores para ampliar seu próprio repertório, evitando se acomodar apenas com leituras que atendam seu gosto pessoal e aventurando-se a, por exemplo, gêneros literários que lhe são menos familiares. 

Além disso, as autoras destacam a importância da bibliodiversidade, ou seja, o cuidado em diversificar as leituras oferecidas considerando uma variedade de escritores e escritoras, temas, gêneros e editoras. Outro critério importante é não fugir dos temas polêmicos disparados pela leitura de certos livros. Elas citam, por exemplo, a preparação necessária para conversar sobre racismo após a leitura de O avesso da pele, de Jeferson Tenório, ou sobre incesto, se o livro da vez for As avós, de Doris Lessing. Por fim, ressaltam que, além dos assuntos principais que norteiam as obras, há sempre temas transversais sobre os quais também se pode conversar nos encontros, evitando que a troca se torne uma camisa de força restrita ao que está mais explícito num livro.

Sem receitas

Depois de elencar o tipo de obra ideal para os encontros — a literária —, Durand e Gerbovic detalham aspectos específicos da mediação, como os critérios para escolha dos livros lidos nos clubes, o preparo prévio dos encontros e a importância de uma escuta efetivamente aberta.

A abordagem é bem-sucedida em trazer exemplos práticos que podem apoiar mediadores iniciantes: fazer perguntas com objetivo de disparar boas conversas (as autoras indicam a preferência por perguntas mais amplas, que não motivem respostas ou opiniões pré-definidas); estratégias para destacar trechos das obras (por exemplo, selecionar os que provocaram deslocamentos, surpresa ou encanto e que possam ser lidos em voz alta, convidando participantes a também compartilharem seus trechos preferidos); e dicas para os mediadores lidarem com temas polêmicos durante os encontros (como evitar a manifestação imediata de uma opinião sobre determinado assunto, preferindo antes escutar o grupo).

Ainda que o livro ofereça uma boa orientação para a formação e a realização dos clubes de leitura, nada antecipa com exatidão o resultado dos encontros — cada mistura de participantes e mediadores é singular, e a surpresa é a graça dessa prática. Durand e Gerbovic evitam receitas prontas, mas ressaltam certos princípios: a importância de se estar em círculo, sempre que possível; a abertura para o diálogo, sem imposições; o respeito aos vários tipos de leitores e leituras; a atenção aos impactos éticos e estéticos que a prática pode provocar.

Liberdade

Uma das experiências mais marcantes das autoras foi com o projeto Remição em Rede, sobre o qual contam na parte final do livro. Implantado em 2017 no estado de São Paulo, quatro anos após a remição de pena pela leitura ser recomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (cnj) e virar lei, o projeto prevê que a cada mês um livro lido represente menos quatro dias de pena. O programa também forma pareceristas voluntárias que leem resenhas e relatórios de leitura dos participantes.

Segundo as autoras, são comuns os relatos de pessoas presas afirmando que inicialmente se interessaram pelos clubes de leitura por causa da possibilidade de remição da pena, mas que depois perceberam não ser apenas isso que as fazia permanecer — e sim a possibilidade de se tornarem efetivamente leitoras de literatura. Considerando que nas prisões estaduais de São Paulo 46,6% das pessoas têm o Ensino Fundamental incompleto, esses depoimentos apontam o alcance significativo dos clubes de leitura na formação desses cidadãos. Os relatos são marcantes e revelam o caráter revolucionário dos clubes de leitura, como mostra o depoimento de um leitor reproduzido no livro:

Quando estamos com um livro nas mãos é o único momento em que não estamos aqui. Não esqueçam da gente. Tragam sempre muitos livros. É a nossa liberdade aqui dentro.

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).