Literatura infantojuvenil,

Bibliofilia para iniciantes

Coleção dos anos 90 é republicada em dois volumes saborosos para amantes dos livros de qualquer idade

30set2023 | Edição #74

Quando recebi a dupla O livro da história do livro e O livro da história da comunicação, de Ruth Rocha e Otávio Roth, de cara percebi que se tratava de uma viagem no tempo, tanto pelos títulos quanto pelo jeitão de cartilha com ar antigo, como aqueles manuais de instruções com partes desenhadas e numeradas. Li de uma vez as 160 páginas somadas dos dois volumes.

Lembrei logo dos livros infantis do Instituto Isotype, que me encheram de entusiasmo quando os conheci. O acrônimo para “International System of Typographic Picture Education” diz respeito a uma linguagem pictográfica desenvolvida a partir dos anos 20 na Áustria para comunicar informações de maneira acessível por meio da linguagem não verbal, cuja evolução culminou nos pictogramas usados até hoje mundo afora.

   

Eles encampavam estratégias básicas para se comunicar com as crianças, como o uso de linguagem amigável e que instiga envolvimento com as ilustrações. Também promovem um equilíbrio na representação de detalhes, sem exageros, apenas o suficiente para satisfazer às expectativas. Encontrei o mesmo nessas obras, e era de se esperar, a julgar pelo peso dos nomes impressos nas capas.

A série é o resultado do processo cuidadoso de colaboração iniciado em 2019 entre o Acervo Otávio Roth, o Acervo Ruth Rocha e a Companhia das Letrinhas. As equipes reuniram nos dois volumes atuais os oito livros da série O Homem e a Comunicação, originalmente publicados pela Melhoramentos em 1992 e premiados com o Jabuti nas categorias Produção Editorial e Melhor Produção Editorial Infantojuvenil no ano seguinte.

Se considerarmos os livros como uma extensão da memória e da imaginação humanas, a chegada dessa dupla depois de trinta anos é uma iniciativa feliz e mais que bem-vinda para preencher a lacuna na oferta de livros que trazem a evolução da produção editorial para a infância e, mais ainda, que apresentam um pouco de Roth e sua obra para as novas gerações. É para comemorar!

Memória gráfica e afetiva

Em O livro da história do livro são contadas a história das tintas, do lápis, do papel e do livro. Já em O livro da história da comunicação, conhecemos a história dos gestos e dos símbolos, das línguas, das letras e da escrita. Os tópicos vêm organizados em capítulos, precedidos de um sumário e de uma apresentação afetuosa assinada por Ruth, que conta sobre a criação com o amigo Otávio desses textos baseados nas pesquisas que ele mantinha sobre papel, livros e comunicação em geral. Aprendemos sobre práticas sociais de circulação dos conhecimentos, registro e leitura, e também sobre tecnologia, artefatos, recursos materiais. Temos um texto fluido, simples e cativante, fruto da maestria habitual da autora, já tão conhecida. Por isso dedico este espaço ao outro autor, menos lembrado, Otávio Roth.

Roth foi artista gráfico, papeleiro, ilustrador, autor de livros para crianças, publicitário, designer gráfico, além de ter proposto instalações de arte participativa (“Peninhas” e “A árvore” merecem ser conhecidas). Comprometido com causas sociais, suas imagens traziam senso de humor e deslocavam a estrutura da linguagem, eram marcadas pela subjetividade, numa busca permanente pela inventividade nos processos do fazer artesanal. Seu engajamento na defesa dos direitos humanos resultou em parcerias com a Organização das Nações Unidas, entre elas a adaptação dos textos, ao lado de Ruth Rocha, e ilustrações dos trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos para um livro publicado em 1988.

Caça-palavras e imagens

Coautor dos textos, Roth fez o projeto gráfico dos oito originais de 1992, ilustrados por Raquel Coelho. A edição atual traz uma proposta igualmente cativante, de Raul Loureiro, designer com longa trajetória na criação visual de capas, livros e coleções.

Os capítulos seguem um projeto gráfico conciso e bem explorado, que dá espaço para os textos, dispostos de maneira simples e confortável para a leitura. Esses correm em paralelo às ilustrações, sem muitas quebras. As imagens, por outro lado, proliferam e sobrepõem referências à história das culturas materiais e ao mundo das artes gráficas. É um texto à parte que acontece ali. A todo momento o visual faz alusão ou reinterpreta o que está escrito em palavras, em um jogo de “caça-imagens” no texto ou “caça-palavras” na imagem. Cada um escolhe como quer brincar.

A linguagem visual é de hoje, com cara antiga, os textos têm trinta anos, editados para hoje. E funciona bem

As cores são várias, mas não têm a estética de tons vibrantes e traços divertidos comuns em livros para a infância. A dupla tem uma identidade visual própria, que pode ser desfrutada por crianças, jovens e adultos, tanto pelos textos quanto pelas ilustrações. Estão reunidas reproduções de pinturas rupestres, tabuletas de escrita cuneiforme dos sumérios, gravuras de Humboldt, imagens de canetas de pena, figuras maias, polvos e cochonilhas, um apontador de mesa antigo, hieróglifos, fitas cassetes — e tudo arranjado em composições visuais livres. Haja pesquisa iconográfica!

Dentro de um espectro de tipos de livros ilustrados não ficcionais, a relação entre texto e imagem proposta aqui não é convencional. Mesmo com uma diagramação tradicional, que separa claramente palavra e desenho, as ilustrações fazem comentários indiretos, que por vezes ampliam os textos e tornam o formato peculiar. Lembra uma cartilha, mas de perto não é, porque tem uma particularidade: a linguagem visual é de hoje, mas com cara de anos anteriores, e os textos têm trinta anos, mas editados para hoje. E tudo funciona bem.

Chaves

Para João Adolfo Hansen em O que é um livro? (Ateliê Editorial e Edições Sesc São Paulo, 2019), os grandes textos desafiam a nossa familiaridade com as coisas e carregam uma pergunta radical: “Você trouxe a chave?”. Ele ainda afirma que, entre o momento da escrita e o da leitura, um intervalo de linguagem se tece, que é igualmente de tempo e sentido: 

Quanto maior é o tempo que separa o autor e o leitor, mais difícil é a leitura, pois os critérios de invenção do texto são outros. […] Quero dizer: o livro é uma obra acabada sempre inacabada porque sempre aberta às iniciativas de leitores de diversas mediações sociais.

Fiquei indo e voltando, tentando compreender os dois livros, mas também a relação que guardam com as edições originais. O que mudou e como. Espero que novos leitores também encontrem suas chaves para abrir essas portas preciosas.

Quem escreveu esse texto

Ana Paula Campos

Designer, é autora de Inventório, mestrado pela fau-uspsobre design e livros informativos para crianças.

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.