Literatura infantojuvenil,

Além do mero passatempo

Aos 89 anos, Ruth Rocha lança almanaque com sua conhecida rejeição às empoeiradas lições de moral para crianças

01out2020 • Atualizado em: 18maio2023 | Edição #38 out.2020

O mais recente lançamento com a assinatura de Ruth Rocha segue fielmente a definição de almanaque que consta nos dicionários: “folheto ou livro que, além do calendário do ano, traz diversas indicações úteis, poesias, trechos literários, anedotas, curiosidades etc.”. A autora já publicou anteriormente o Almanaque Ruth Rocha, mas o novo Almanaque do Marcelo — e da turma da nossa rua, primeira parceria de Ruth com a filha, Mariana Rocha, ganha uma dimensão além do passatempo. Recorrendo a seus personagens mais populares como condutores do conteúdo, o livro serve como um tributo divertido e moderno a uma autora que é quase sinônimo de literatura infantojuvenil no Brasil.

Não é exagero dizer que o almanaque condensa as virtudes exibidas nos mais de duzentos livros escritos por Ruth Rocha em seus 89 anos de vida. Com desenhos de Mariana Massarani, que ilustrou dezenas e dezenas de obras da autora, o volume exibe a linguagem coloquial, compromisso constante da escritora, e sua rejeição às lições de moral que infestam publicações para pequenos leitores.

A escritora publicou seu primeiro livro, Palavras, muitas palavras, em 1976, e não parou mais. Apesar da imensa produção nesses mais de quarenta anos de carreira, é muito fácil apontar sua maior obra. Marcelo, marmelo, martelo tem tradução em 25 idiomas e mais de 20 milhões de exemplares vendidos para confirmar a força do personagem que brinca de inventar nomes para coisas que já existem.

Para esse novo almanaque, os capítulos divididos nos doze meses do ano têm cada um seu “apresentador”. Marcelo abre o livro com o mês de janeiro, e os outros capítulos trazem nessa função seus amigos integrantes da turma da nossa rua. 

Ruth Rocha compreende e respeita a capacidade das crianças de entender um discurso ao mesmo tempo fragmentado e fluido

São figuras conhecidas como Gabriela, Catapimba, Teresinha e o popular cão do grupo, Latildo, que um dia se chamou Godofredo. Há uma distribuição equilibrada a cada mês entre datas comemorativas, curiosidades da ciência e da natureza, poemas fofos, piadas, recordes e brincadeiras, muitas brincadeiras.

O traço e as cores bem vívidas usados por Mariana Massarani são imprescindíveis para que o almanaque pareça acolhedor a leitores já acostumados ao universo de Ruth Rocha. Apesar de ela também trabalhar com outros ilustradores muito bons, a identificação dos seguidores da autora com Massarani é fortíssima. São dela os desenhos celebrados de Marcelo, marmelo, martelo.

A maneira como a ilustradora criou os personagens é singular. Eles não carregam características visuais exageradas que costumam ser recursos para marcar um traço particular, como cabeça grande, pernas muito longas ou corpo rechonchudo. Marcelo e a turma são garotos atraentes, que ganham personalidade própria em pequenos detalhes. Eles funcionam bem e dividem a atenção com os outros elementos dos desenhos.  

Mais do que ser uma porta para as propostas literárias de Ruth, Almanaque do Marcelo é, na prática, um instrumento perfeito para pais em busca de entretenimento para os filhos. Em famílias que têm o hábito da leitura coletiva, o conteúdo fragmentado do almanaque pode alimentar algumas horas de conversas e brincadeiras.

Montanha-russa

A variação temática tem ritmo acelerado. De uma página para outra, a leitura vai de curiosidades sobre futebol aos hábitos dos animais, de astronautas a receitas culinárias, de poemas divertidos a propostas de atividades manuais com papel, tesoura e cola. Para um adulto, essa montanha-russa de assuntos pode oferecer saltos aparentemente abruptos, mas Ruth Rocha desde sempre compreende e respeita a capacidade das crianças de entender um discurso ao mesmo tempo fragmentado e fluido. Conversar com uma criança é perceber como a prosa balança de um lado para outro, conectando temas variados com a velocidade das sinapses.

Alguns itens do cardápio oferecido podem ser destinados a leitores de idades diferentes, e as autoras parecem não considerar isso relevante. Um exemplo prático: em um texto sobre a cientista polonesa Marie Curie, em uma galeria de mulheres brilhantes, está escrito que ela se dedicou a estudar a radiação, sem mais explicações. Algumas crianças podem não ter a menor noção do que seja radiação, mas para estas basta virar a página e logo encontrar outra informação que atraia sua atenção.

Para os adultos que decidirem abrir o livro por curiosidade ou nostalgia, aqueles que hoje estão entre os quarenta e sessenta anos certamente vão reconhecer nas brincadeiras o DNA da revista Recreio nas décadas de 1970 e 1980. Depois de escrever sobre educação na revista Claudia, Ruth Rocha foi editora da Recreio e, em seguida, dirigiu as publicações infantojuvenis da Editora Abril.

Quem foi criança nos anos 1970 pode recordar a expectativa a cada semana de um novo exemplar da Recreio. Cartolina, lápis de cor, tesoura e cola davam vida a prédios, carros e bichos. As páginas da própria revista ofereciam moldes que tornavam fácil a montagem de um leão de papel. Um tremendo sucesso.

Almanaque do Marcelo escapa de ser pura nostalgia. Há frescor num formato consagrado. As autoras parecem empenhadas em mostrar como um livro pode conter encanto difícil de ser proporcionado numa tela de computador. Trata-se de uma celebração dos livros como companheiros de uma garotada pronta a ser estimulada por eles.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Thales de Menezes

É autor de Alguém vai se machucar hoje à noite (Pauliceia).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.