Um país entre a ‘Bíblia’ e a bala

No dia 1º de janeiro de 2023, o Congresso Nacional foi ocupado por dezenas de pessoas que acompanhavam a posse do recém-eleito presidente Lula. Na plateia, composta por jornalistas, autoridades públicas e seus familiares, um objeto se destacava: acima de todas as cabeças, erguida e aberta, estava uma Bíblia. Quem a segurava, vestindo uma farda, era o deputado federal Pastor Sargento Isidório, reeleito para um segundo mandato pelo Estado da Bahia. Isidório é desde 1981 sargento da Polícia Militar baiana — atualmente apontada como a mais letal do Brasil.

Em 1991, o militar passou a frequentar a igreja pentecostal Assembleia de Deus. No mesmo ano, criou a Fundação Dr. Jesus, comunidade terapêutica que conta com centenas de internos e já foi denunciada por maus tratos. Assim como as histórias de Marcelinho, Cabo Bruno e Paulo, alguns dos personagens apresentados por Bruno Paes Manso em A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do século 21, a de Isidório parece sintetizar a convergência de duas ordens cada vez mais interligadas: a da “Bíblia” e a da bala. 

A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do século 21, do jornalista Bruno Paes Manso

Essa articulação pode ser vista entre os diferentes grupos do Congresso: além de alguns parlamentares integrarem tanto a chamada bancada da Bíblia quanto a da bala, estudos como o de Marina Lacerda (autora de O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro) mostram como os membros dessas bancadas se aliam nas votações de projetos encabeçados por uma delas, seja quando a discussão gira em torno da segurança pública seja quando diz respeito aos direitos reprodutivos das mulheres ou aos direitos civis de pessoas LGBTQIA+. 

Fé e fuzil aparecem como alternativas à modernização incompleta e excludente do país

A aliança também se cristalizou na eleição de Jair Bolsonaro à presidência: entre 2019 e 2022, o Executivo fez avançar demandas históricas dos dois grupos, como a ampliação da circulação de armas de fogo ou as tentativas de restringir o direito ao aborto legal. Em pesquisa realizada pelo LAUT (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) nos últimos dois anos, a ser publicada em 2024, observamos que, para além de se alinharem na defesa de pautas concretas, esses grupos compartilham interpretações sobre certos direitos fundamentais, o papel do Estado na vida dos cidadãos, além da própria ideia de cidadania.

Para além das conexões no plano da política institucional e na atuação nas esferas formais de poder, Paes Manso revela como as ordens da “Bíblia” e da bala se entrecruzam na vida das pessoas que habitam as periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro. A partir de narrativas de pessoas que acompanha há décadas como repórter e pesquisador nesses territórios, o autor analisa os processos de articulação e expansão dos dois grupos. Como procura demonstrar, o conservadorismo evangélico e coletivos que atuam nas fronteiras entre o legal e o ilegal, como as milícias e o crime organizado, têm pontos de contato. Um e outro “são instituições criadas pelos pobres, para os pobres”, que produziam “novos discursos capazes de reprogramar as mentes”. Ou ainda formas de autogoverno nascidas nas periferias e nas prisões para “gerar ordem e propósito” e que, na última década, têm ajudado a “definir o futuro brasileiro”. 

Num sobrevoo pela história do país, o jornalista identifica o estabelecimento de São Paulo como um grande centro econômico, as migrações do campo para as grandes cidades entre 1950 e 1970, e os processos de favelização que se seguiram, com o surgimento dos esquadrões da morte nas periferias. O fuzil emerge então como possibilidade de produção de ordem, consolidando uma “crença de que os homicídios serviam como um instrumento para lidar com o atraso brasileiro”. Anos mais tarde, o pcc procuraria outras formas de executar a mesma empreitada: colocar ordem nos mercados ilegais. 

Nesses mesmos territórios, Paes Manso descreve como a fé se fez presente, inicialmente pela Igreja Católica e seus movimentos de ação de base conectados com a teologia da libertação. Progressivamente, ganharam espaço as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais que, como o grupo do fuzil, carregam em sua doutrina uma ideia de respeito à ordem e à hierarquia. Enquanto as igrejas “exorcizavam demônios ou reformatavam as mentes pecadoras”, pregando a possibilidade de uma nova vida e da salvação no juízo final, os esquadrões da morte, e depois o crime organizado, agiam “para limpar as ameaças da face da Terra, identificadas na figura dos bandidos”.

Deus belicista

O autor reflete sobre como a violência assume um caráter redentor em ambos os fenômenos. No discurso evangélico, aparece na ênfase num Deus belicista, pronto para vencer batalhas pelos fiéis e castigar aqueles que não seguem os mandamentos da Bíblia ou que se encontram “endemoniados” — estigma que pode abarcar a comunidade LGBTQIA+, feministas, famílias fora do padrão e as religiões de matriz africana e indígena. Transposta para o espaço público, a linguagem do sagrado começa a ser utilizada para organizar questões políticas. A aposta num Deus violento serve tanto a pessoas vinculadas ao comércio de drogas ilegais, que buscam conquistar e manter seus territórios, quanto àquelas contrárias à descriminalização do aborto.

Se a violência aparece como ponto que estrutura a atuação e a retórica dos grupos ligados à fé e ao fuzil, Paes Manso também descreve a trajetória dessas duas esferas a partir de outro ponto que as conecta: a atuação orientada para o lucro individual. Igrejas, milícias e crime organizado, cada qual à sua maneira, afirma o autor, oferecem possibilidades de ascensão econômica, seja pelo discurso da Teologia da Prosperidade ou pelo controle de mercados ilegais. Derivam daí também uma possibilidade de acesso a espaços e direitos negados às populações periféricas.

Caminhando lado a lado nas periferias, fé e fuzil aparecem como alternativas para os problemas da modernização incompleta e excludente que marca a história do país. Os elementos compartilhados pelos grupos de bala e “Bíblia”, além de ordenarem o cotidiano de milhões de brasileiros, também estruturam como grupos conservadores interpelam o Poder Judiciário na disputa por direitos. Ao final, fica a questão: como desembaraçar circuitos já tão interligados e articular novos caminhos políticos e jurídicos baseados no bem comum e na coletividade?