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No Brasil da impunidade

Desistir não é uma opção para as três gerações de mulheres que buscam justiça pela morte de Luiz Eduardo Merlino na ditadura

01abr2024
Angela Mendes de Almeida exibe foto Luiz Eduardo Merlino [Nicolau Bruno de Almeida/Acervo Pessoal]

A historiadora Angela Mendes de Almeida, de 85 anos, costuma dizer que os acontecimentos de 1971 determinaram todos os passos de sua vida. Angela e Luiz Eduardo Merlino eram companheiros de amor e de militância contra a ditadura quando ele morreu em decorrência da tortura a que foi submetido no DOI-CODI de São Paulo. A morte brutal do jovem jornalista a marcou para sempre. Ao longo de cinco décadas, Angela construiu sua luta por justiça ao lado de três gerações da família de Merlino: a mãe, Iracema; a irmã, Regina; e a sobrinha, Tatiana.

Foi ainda menina que Tatiana, hoje com 47 anos, tomou contato com a história do tio. A avó Iracema, com quem morava, tinha um retrato de Luiz Eduardo na penteadeira, sempre com uma flor ao lado. Falava com orgulho e tristeza do rapaz inteligente de 23 anos que morreu cedo demais. Iracema aprendeu o que era a luta depois da dor da perda, passou a frequentar reuniões e em 1979 moveu um processo contra o Estado brasileiro.

Mas não era muita coisa que se conseguia falar na casa de Tatiana sobre as circunstâncias da morte do tio, de cuja convivência a ditadura a privou. Atravessando esse silêncio dolorido, Tatiana começou a reconstituir os acontecimentos a partir de documentos que sua avó guardava numa pasta azul desbotada. Fazia isso depois da escola, quase escondida, sem coragem de comentar o que descobria, de tão pesado que era.

Embora a aproximação dessa história seja constitutiva de quem Tatiana se tornou, jornalista como o tio, premiada no campo dos direitos humanos, ela conta que só se reconheceu como pessoa atingida pela ditadura quando organizou o projeto que resultou no livro Infância roubada (Ed. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 2014). Pessoas que, quando crianças, tiveram pai ou mãe presos, torturados, mortos, testemunharam perante a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Ouvi-las fez a jornalista se dar conta da extensão da violência praticada pelo regime, dos traumas que atravessam gerações: além do tio, a avó, a mãe e ela própria, nascida cinco anos depois da morte dele, também eram vítimas.

Em 2023, a família Merlino viu o seu processo contra Carlos Alberto Brilhante Ustra ser extinto

Em 29 de novembro de 2023, depois de acompanhar sessões inteiras do Superior Tribunal de Justiça (STJ) durante cinco meses, aguardando a conclusão do julgamento do seu recurso, a família Merlino viu o seu processo contra Carlos Alberto Brilhante Ustra ser extinto em poucos segundos.

Ustra chefiou o DOI-CODI de São Paulo entre 1970 e 1974, período no qual ocorreram ao menos 45 mortes e desaparecimentos por ação de agentes vinculados a essa unidade militar, segundo a Comissão Nacional da Verdade. Ele não só comandou a tortura de Merlino como tomou a decisão de não autorizar a amputação da perna que o salvaria de uma gangrena, consequência das sevícias contínuas no pau de arara.

Com o fechamento do Judiciário a processos criminais contra agentes da ditadura, a família Merlino buscou o reconhecimento da responsabilidade de Ustra por tortura e morte numa ação civil, em 2007. A iniciativa foi inspirada no processo movido pela família Almeida Teles contra o militar, que resultou naquela que é até hoje a única decisão judicial definitiva que reconhece um agente da ditadura brasileira como torturador. A saga que a família Merlino começou no Judiciário já dura quase vinte anos.

“A injustiça é muito grande, porque é a mesma ação”, diz Amelinha Teles. Foi, de fato, uma ação igual à sua que a família Merlino propôs, elaborada pelo mesmo advogado, buscando a declaração da responsabilidade de Ustra. Mas, em sentido oposto ao que aconteceu no caso dos Almeida Teles, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu que a família Merlino não poderia buscar no Judiciário uma mera declaração; seria necessária uma ação que pedisse também indenização. Foi o que o advogado fez, embora o objetivo fosse obter o reconhecimento de que Ustra comandou a tortura que levou Merlino à morte.

Ustra morreu em 2015, mas demandas de reparação, diferente de processos criminais, persistem depois da morte dos acusados. Em 2012, a sentença dessa segunda ação condenou Ustra civilmente. Apesar dessa primeira vitória, em 2018 o TJSP reviu a decisão da primeira instância, obrigando a família a recorrer ao STJ.

A decisão que o STJ tomou no fim de 2023 usa argumentos formais para rejeitar o recurso. O texto diz que a família Merlino teria demorado excessivamente para mobilizar o Judiciário e, com isso, seu direito de acionar Ustra prescreveu. É certo que o mesmo STJ firmou o entendimento de que pretensões de reparação por tortura durante a ditadura não prescrevem, pois deve se considerar, além da gravidade do ato, a dificuldade em se produzir provas. No entanto, segundo a decisão, esse entendimento vale apenas em processos movidos contra o Estado e, no caso Merlino, o que se busca é o reconhecimento da responsabilidade de um agente da repressão. Responsabilizar um agente 52 anos depois desprezaria “os princípios de reconciliação e de pacificação nacional”.

Luta, substantivo feminino

Quando voltou do exílio em 1981, Angela relata que “ninguém queria ouvir falar de mortos” e a anistia era mobilizada para interditar conversas sobre as violências da ditadura. Na contramão de discursos sobre “seguir em frente”, estão as mulheres que decidiram não esquecer. As mães, companheiras, irmãs, as que sofreram torturas carregaram a memória e a busca por respostas. “Luta, memória, verdade e justiça são substantivos femininos e em todos são as mulheres que estão à frente”, lembra Amelinha Teles.

Nesse “Brasil de impunidade”, observa Tatiana, fica favorecida a continuidade dessas violações no presente. Ela própria se dedicou como jornalista a denunciar a violência praticada na democracia contra corpos negros, pobres e periféricos, influenciada por Angela, que, na PUC-SP, criou um observatório para documentar casos de agressão policial. Há um fio histórico ligando sua avó, sua mãe, a viúva de seu tio e ela própria às familias que denunciam incansavelmente a violência de Estado.

A saga pela responsabilização de Ustra ainda não terminou. O veredito do STJ pode ser revisto e contestado na esfera internacional. E apesar de toda a dor e injustiça, as mulheres da família Merlino persistem e nos lembram, nos sessenta anos do golpe militar, que desistir é o pior que pode acontecer.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Luisa Plastino

É mestre em direito e desenvolvimento pela FGV-SP.

Carla Osmo

É professora de Direito na Unifesp.