Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Desradicalizar e democratizar

É preciso entender e enfrentar o crescente extremismo político no país para proteger a democracia brasileira

01maio2024 • Atualizado em: 14maio2024
Ilustração de Isadora Bertholdo

O Brasil tem passado por um processo de radicalização política que afeta a qualidade da democracia brasileira e atinge diferentes níveis da sociedade. Episódios recentes incluem os ataques golpistas aos prédios dos três poderes no 8 de janeiro de 2023; a disseminação em massa de desinformação por grupos em mídias sociais questionando a legitimidade do sistema eleitoral; e a atuação da Polícia Rodoviária Federal no segundo turno das eleições de 2022, ao barrar a entrada de eleitores em diversos municípios do país, para citar alguns. 

Esse processo de radicalização modifica mentalidades e comportamentos individuais, além de alterar dinâmicas de grupos e o funcionamento de instituições políticas fundamentais, corrompendo normas e valores democráticos. Evidentemente, essa escalada de atitudes extremistas é perigosa, e acontece em pelo menos três níveis: a radicalização de indivíduos e grupos sociais; de organizações da sociedade civil; e de instituições políticas formalmente constituídas. 

Grupos extremistas reivindicam, de modo unilateral, o uso legítimo da violência

No Brasil, a radicalização antidemocrática opera como forma de disputa política de poder por meio da propagação de ideais antipluralistas, do delineamento de objetivos políticos autoritários e da eleição da violência física e política como repertório de ação. É uma forma de extremismo político pautada pela convergência entre métodos de ação e por mentalidades e ideologias extremistas que afeta variados campos sociais e políticos com o objetivo de disputar valores, normalizar a violência e cooptar autocraticamente arenas centrais da vida política. 

Definir com precisão o que é extremismo e compreender seus desdobramentos em contextos democráticos pode ser uma tarefa difícil e arriscada. Em sua face política, no entanto, podemos afirmar que movimentos extremistas orientam sua ação hostil contra minorias, lideranças políticas, funcionários do Estado e instituições interpretadas como essencialmente inimigas. 

Nos últimos anos da política brasileira, observamos casos que ilustram a vilanização encampada por atores de extrema direita, alcançando a esfera institucional, contra grupos que não representam a heteronormatividade, o cristianismo e o conservadorismo: ataques à população LGBTQIA+, tanto com violência física como política, a exemplo de projetos de lei que tentaram proibir o debate de questões de gênero na educação; casos de perseguição e intolerância contra religiões de matriz africana, como a destruição de terreiros em diversos estados do país; e ofensivas sociais e institucionais contra a esquerda política, a partir de discursos como o do ex-presidente Bolsonaro de “fuzilar a petralhada”, agressões físicas contra eleitores de esquerda tachados como “comunistas” e cortes orçamentários com viés ideológico em políticas de incentivo cultural.

Controle

Neste sentido, o extremismo político possui duas características centrais. Em primeiro lugar, é indissociável da defesa de concepções excludentes de cidadania. Grupos extremistas procuram controlar os termos e as condições do pertencimento político de uma sociedade, condicionando direitos e liberdades — ou até mesmo a existência social — de indivíduos e grupos aos valores e visões de mundo próprios a eles.

Em segundo lugar, extremistas reivindicam, de modo unilateral, o uso legítimo da violência, seja com ações extrainstitucionais de violência política, seja no emprego da violência pelo Estado. Buscando se contrapor a uma “teoria intuitiva do extremismo”, o filósofo Quassim Cassam, no livro Extremism: a Philosophical Analysis (Routledge, 2022), sugere como modelo de análise e identificação do extremismo político a atenção à convergência autoritária de três fatores: o extremismo de método, em que uma pessoa ou um coletivo emprega repertórios de ação política violenta para a obtenção de objetivos políticos; o extremismo ideológico, no qual adere e reproduz ideologias autoritárias e excludentes; e o extremismo de mentalidades, em que a formação de identidades sociais desenvolvida pelo grupo é baseada na disposição da intransigência e da desconfiança paranoica.

Arenas

Tão importante quanto compreender a psicologia ou a estratégia política de atores antidemocráticos específicos, portanto, é identificar espaços ou arenas políticas na democracia brasileira nos quais a radicalização de ideologia e mentalidade autoritárias, de um lado, e a normalização de seus métodos de ação, de outro, têm sido constantes. Arenas de radicalização autoritária tendem a conferir recompensas simbólicas, materiais e organizacionais para indivíduos e grupos dispostos a escalar a construção de identidades extremistas antidemocráticas, orientadas pela reprodução de narrativas de crise. 

Neste contexto, quatro arenas de radicalização servem de exemplo privilegiado do atual arranjo político brasileiro: arenas da força, que incluem as relações de poder das forças armadas e das demais organizações de segurança pública com as instituições civis; arenas da Justiça, localizadas na estrutura e funcionamento do sistema de Justiça, com destaque para o Poder Judiciário; arenas da comunicação, constituídas pelos meios de comunicação tradicionais e digitais que sofrem com investidas de desinformação e deslegitimação de fatos históricos e consensos científicos; e arenas de associação, compostas pela sociedade civil organizada e suas múltiplas interações com a educação e religião. É nessas arenas de radicalização que, acreditamos, a luta pela manutenção e pelo aprofundamento do regime democrático está sendo disputada no Brasil.

A radicalização resulta da troca sistemática de repertórios de organização e de ação insurrecionalistas

A dinâmica de radicalização autoritária que atinge o país não é um processo linear, tampouco começou com a presidência de Jair Bolsonaro. Por outro lado, foi possível observar que, desde a última presidência, algumas tendências de radicalização encontraram terreno fértil para se proliferar e aprofundar em alguns segmentos de atuação pública, tendo em vista os acontecimentos recentes que colocaram em xeque a democracia brasileira: omissão governamental na gestão da crise sanitária, ataques ao Congresso e Judiciário, ecossistema de desinformação digital, flerte entre governo e Forças Armadas na arquitetação de um golpe de Estado, entre outros.

O fenômeno da radicalização autoritária não é exclusivo da política brasileira. Como amplamente demonstrado na literatura comparada sobre a extrema direita, em trabalhos como Hate in the Homeland: The New Global Far Right (Princeton University Press, 2020), de Cynthia Miller-Idriss, The Far Right Today (Polity Press, 2019), de Cas Mudde, e Bring the War Home: The White Power Movement and Paramilitary America (Harvard University Press, 2018), da historiadora Kathleen Belew, a radicalização da extrema direita nos Estados Unidos, na Alemanha e em Israel é resultado não apenas de uma simpatia espontânea de ideias e valores, como também da troca sistemática de capacidade organizacional e repertórios de ação abertamente insurrecionalistas entre atores antidemocráticos. Por essa razão, é fundamental investigar o fenômeno da radicalização antidemocrática nas democracias liberais e construir uma agenda propositiva de políticas públicas e reformas legais de desradicalização que se contraponham a ela no cenário brasileiro. 

Combate

Processos de desradicalização podem ser pensados de muitas maneiras diferentes, indo de políticas pontuais ao fomento de valores e práticas na cultura política. O contexto de radicalização autoritária no qual vivemos exige a formulação de políticas públicas e reformas institucionais específicas que busquem a desradicalização. Dentre as principais reformas de desradicalização, a partir das quatro arenas de radicalização apontadas, é possível citar: novos marcos regulatórios para o funcionamento das plataformas de mídias sociais; reorganização das relações civis-militares, com o controle civil efetivo das Forças Armadas para a proteção de direitos e liberdades fundamentais, proteção da laicidade e civilidade da educação pública contra ideologias extremistas e modelos de organização militarista; e criação de mecanismos de responsabilização democrática de polícias e tribunais brasileiros.

A resiliência eleitoral de autocratas, mesmo após derrotas importantes nos últimos anos, dá bons motivos para levar a sério a urgência política da desradicalização. A democracia é um empreendimento delicado e incerto. A proposta de uma agenda de reformas democráticas pautadas pela desradicalização de grupos, organizações e heranças institucionais autoritárias é uma resposta factível para a defesa da democracia e que pode ser articulada no interior de coalizões democráticas de amplo alcance. Do aprendizado de extensas alianças transnacionais contra forças autoritárias e da renovação geracional do eleitorado pode ser forjada uma nova política democrática. Nas próximas edições da Quatro Cinco Um, a página do LAUT se dedicará a aprofundar a agenda propositiva de desradicalização autoritária da política brasileira.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).

Fernando Romani Sales

É doutorando em direito constitucional na USP, mestre em direito e desenvolvimento pela FGV, pesquisador do LAUT e co-autor de O caminho da autocracia: Estratégias atuais de erosão democrática (Tinta-da-China Brasil, 2023).

Gabriel Andion

É bacharel em direito e pesquisador do Laut.

Lucas Petroni

É cientista político, filósofo, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EESP - FGV) e pesquisador do Cebrap.