Jornalismo,

Um Nobel, por assim dizer, didático

O prêmio concedido a Maria Ressa e Dmitry Muratov vem nos ensinar sobre o que é o jornalismo e qual seu papel na construção da paz

13out2021 | Edição #51

O anúncio de que Maria Ressa, das Filipinas, e Dmitry Muratov, da Rússia, foram agraciados com o Prêmio Nobel da Paz vem nos ensinar um pouco sobre o que é o jornalismo. A notícia circulou na madrugada de sexta-feira, dia 8 de outubro de 2021, com uma repercussão tão esclarecedora (no sentido iluminista da palavra) quanto trepidante (no sentido sismológico mesmo). Por mais atenção que tenha despertado, o anúncio merece ainda mais destaque.

A lição acerca da natureza da imprensa não veio com o arrazoado que justifica a escolha dos dois nomes, ainda que ele seja justo e claro. O comunicado oficial do comitê norueguês responsável pela mais prestigiosa condecoração da nossa era ressalta que os laureados promovem, com seu trabalho, a liberdade de expressão, “que é pré-condição para a democracia e para a paz duradoura”. São palavras precisas, plenas de sentido e de sabedoria, mas a lição maior é outra.

O que o anúncio desta sexta-feira ensina é algo menos aparente e, não obstante, muito mais decisivo: o jornalismo, antes de ser uma ação social que, ao fiscalizar o poder, limita seus abusos, é um fator de construção da paz. O jornalismo não é um combate, embora tantos morram no seu exercício, mas uma forma social de se consolidar a cultura de paz. 

Nisso reside uma das ideias mais poderosas e mais necessárias da atualidade. É comum que pensemos nos grandes jornalistas como seres de coragem que empreendem jornadas heroicas, abnegadas e de alto risco. É comum que olhemos para o jornalismo como olhamos para uma grande batalha. Muitas vezes, a caneta — esse instrumento de trabalho do profissional de imprensa — é descrita como um tipo de arma, uma ferramenta de ataque. Metáforas bélicas são recorrentes quando vamos narrar a saga de repórteres em territórios hostis. Dizemos deles que são lutadores destemidos em busca da verdade, que não fogem ao enfrentamento, que não se rendem ao despotismo. 

O jornalismo não é um combate, embora tantos morram no seu exercício, mas uma forma social de se consolidar a cultura de paz

Claro que tudo isso é verdade — são muitos os jornalistas com feitios heroicos e, não por acaso, Maria Ressa e Dmitry Muratov correspondem rigorosamente a esse modelo. Maria Ressa criou, em 2012, nas Filipinas, o órgão de imprensa Rappler, sobre o qual desabam intimidações de todo tipo vindas do jugo autoritário do presidente filipino Rodrigo Duterte. Ela não desiste. Dmitry Muratov fundou a Novaya Gazeta em 1995, já viu seis de seus colegas de redação tombarem assassinados e também não cede. São, os dois, sem nenhum exagero, heróis. A liberdade de expressão deve muito à biografia de ambos.

Mas não está aí o nexo mais fecundo, e mais estruturante, entre o jornalismo e a paz. A lição mais inspiradora do Prêmio Nobel da Paz deste ano está em pensar que, mais do que combatentes, mais do que mártires, jornalistas são construtores da harmonia, e não da discórdia, entre os seres humanos. Temos aí um modo quase poético de ver as coisas, mas nada poderia ser mais rigorosamente objetivo.

Guerra de informação

Vamos aos fatos, como gostam de dizer os editores dos melhores jornais. Ou, mais precisamente, vamos aos fatos históricos. Hiram Johnson, um senador dos Estados Unidos, filiado ao Partido Republicano (que também pertenceu ao Partido Progressista, que deixou de existir), disse, em 1917 ou 1918, que “quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade”. Essas palavras se tornariam um lugar-comum no repertório político e jornalístico do século 20. A mesma frase, com pequenas variações, apareceu em discursos de outros oradores em momentos cruciais, mas cada vez mais se reconhece Hiram Johnson como o autor original. Ele se referia a um efeito óbvio das conflagrações: os jornalistas de uma nação em guerra não vão relatar a verdade estrita e desapaixonada sobre as tropas inimigas, de jeito nenhum. Mais ainda: não vão sair publicando a verdade assim sem mais nem menos, pois sabem que o inimigo poderá se valer dessas verdades para armar o ataque final. Sim, Johnson tinha razão: se uma guerra está em curso, a verdade terá de esperar.

No nosso tempo, no entanto, a coisa piorou um pouco. Agora, a verdade não é mais a primeira vítima da guerra, mas o contrário: a guerra é que pode ser a primeira consequência da morte da verdade. Sejamos um pouco mais específicos. A guerra é (e não apenas “pode ser”) a primeira consequência da irresponsabilidade daqueles que desistem de procurar e fazer valer a verdade factual. A sociedade contemporânea depende da verificação constante da verdade factual para assegurar um ambiente de convivência harmoniosa e de preservação do direito à vida.

Uma prova empírica disso pôde ser sentida quando estourou a Guerra do Iraque. Em 2003, uma coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos invadiu os domínios de Saddam Hussein, contra o qual pesava a acusação de fabricar armas químicas de destruição em massa. A acusação fora publicada, na forma de notícia rigorosamente apurada, em grandes jornais. Era mentira (muitos dos jornais se corrigiriam, muitos anos depois, quando já era tarde), mas aquela manchete foi o que bastou para que a invasão armada eclodisse, com todo o seu apetite devastador. 

A guerra do Iraque só foi viável porque foi precedida por uma fraude informativa. Foi a primeira consequência da morte da verdade sobre Saddam Hussein, que nunca fabricou arma química de destruição em massa nenhuma. Não estamos mais em um tempo em que a guerra nos obriga a sacrificar a verdade, mas em um tempo em que o sacrifício da verdade nos abre caminho para entrar em guerra — tanto faz contra quem. Quando a verdade factual é assassinada, a primeira vítima pode ser a paz. Isto, sim. Se uma sociedade não preza a verdade factual, abre as portas para a violência. 

O Prêmio Nobel da Paz, entregue a dois grandes jornalistas, reconhece essa verdade, que é, ela também, uma verdade factual e objetiva. Se queremos viver em paz, precisamos contar com redações fortes, independentes, capazes de fiscalizar o poder e de estimular o diálogo amplo. Em larga medida, o jornalismo é um dos sustentáculos da paz, pelo menos desde meados do século 20 e, com mais ênfase ainda, no século 21.

Definição de paz

Entendamos bem o que significa essa palavra, paz. Não caiamos no erro de entendê-la como se fosse a mera inexistência de conflitos armados. Em um país submetido a uma ditadura, um observador desatento pode ter a ilusão de que o sossego é a regra. As ocorrências policiais são poucas, a rotina não sofre abalos, tudo flui sob um véu de “vida normal”. A aparência de sossego, no entanto, não tem nada de “paz”. A alegada “paz” de que os autoritários fazem propaganda é produzida pelo medo que oprime. O que há nessa aparência de sossego não é “paz”, mas uma violência virada do avesso que, silenciosa, envolve o corpo social.

A paz da ordem democrática só floresce onde se cultiva o respeito, onde existe o diálogo, onde prevalece a liberdade

A paz de que fala o Prêmio Nobel tem outra natureza, é uma escolha voluntária das pessoas. Essa paz, que é a paz da ordem democrática, só floresce onde se cultiva o respeito, onde existe o diálogo, onde prevalece a liberdade, com homens e mulheres que têm liberdade de se expressar e têm o direito de buscar sem medo a informação verídica. A paz de que fala o Prêmio Nobel não é a ausência de conflitos aparentes, mas a superação partilhada das pulsões selvagens das quais toda guerra se alimenta.

Na “Declaração de Princípios sobre a Tolerância”, aprovada em 1995, na Conferência Geral da Unesco, lemos que “a tolerância é a virtude que torna a paz possível”. Logo, a paz requer tolerância. Mas como entender o que seja a tolerância? A resposta nos espera na mesma declaração da Unesco: a tolerância é “fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença”. 

Tudo aí. Chegamos assim ao que devemos extrair da lição que vem nos dar o Prêmio Nobel. O “conhecimento” é o oposto da indústria da desinformação, essa tara do bolsonarismo. A “abertura de espírito” nós podemos compreender como a mão estendida para o diálogo. Por fim, a “comunicação” só comunica de fato algum sentido quando respeita o conhecimento e a abertura de espírito, com liberdade plena. O Nobel, ao homenagear jornalistas em risco, vem nos convidar a construir a paz.

Quem escreveu esse texto

Eugênio Bucci

Jornalista e professor, é autor de Incerteza, um ensaio (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.