Infantojuvenil,

Uma casa de invenção

Artistas criam imagens a partir de trechos de clássicos da literatura em obra sobre a liberdade da imaginação

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

Oliver Jeffers e Sam Winston queriam celebrar o amor pela literatura clássica infantojuvenil. Capturar, de um jeito inusitado, o encantamento que surge durante a leitura de uma história atemporal. Com A menina dos livros, realizaram essa homenagem de modo original e ainda levaram o prêmio Bologna Ragazzi de 2017. 

Jeffers, um dos mais importantes autores contemporâneos para crianças, é um artista reconhecido por suas ilustrações e caligrafia características, com livros premiados e traduzidos para mais de trinta idiomas. Winston é artista plástico e tem livros que integram coleções permanentes em importantes museus e bibliotecas ao redor do mundo. 

Um projeto como este poderia resultar em exageros, o que facilmente ocorre quando a intenção é render homenagens. Não é o caso. Talvez porque a homenageada não seja a literatura “infantojuvenil” tal como por muito tempo foi concebida — literatura “menor”, com intencionalidade didática e moralizante. O que mora nos “clássicos” infantojuvenis não é diferente do que mora na “grande literatura” entendida como expressão artística, seja ela destinada a qualquer público. 

Difícil “falar sobre” este livro. Ele precisa, sobretudo, ser visto e revisto: cada folha, palavra por palavra de cada linha, traço por traço de cada imagem que se forma nesse mar de histórias reverenciadas. 

A capa já é um convite para buscar chaves que ajudem a abrir a percepção e os sentidos. Um livro vermelho, com uma fechadura dourada no centro. Uma menina, em toda sua transparência de água, trajando vestido-marinheiro, sentada no topo do livro. A sombra que se projeta atrás dele é formada por frases de cantigas, contos, romances, aventuras fantásticas. É esse universo metaliterário que o leitor é convidado a habitar. 

As guardas estão completamente prenchidas por letrinhas minúsculas, algumas em negrito, onde se leem títulos de obras infantis e juvenis e seus respectivos autores: “Sapo cururu cantiga popular Ao redor da lua de Jules Verne Capitães da areia de Jorge Amado O pequeno polegar contado por Charles Perrault” dentre tantos ali guardados.

Para Hurbineck

Na página da dedicatória, encontramos uma das possíveis chaves para ler o livro para além da singela homenagem à literatura como casa da infância: “Para a Lila, de Sam / Para a Luella, de Oliver (…) E para o Hurbineck”. Segue um trecho do livro A trégua (1963), do italiano Primo Levi:  “Hurbineck morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido. Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras”. Hurbineck é personagem nessa narrativa-testemunho em que Levi conta sua longa viagem de volta para casa depois da libertação de Auschwitz. É uma criança que morre aos três anos de idade num campo de concentração, sobre quem pouco ou nada se sabia. 

Não se pode desconsiderar uma dedicatória como essa. O tributo, então, se torna ainda maior: não apenas as histórias narradas para a infância são reverenciadas aqui. O livro nos lembra, a cada escolha, o valor da liberdade. E não nos deixa esquecer o alcance redentor das palavras quando feitas matéria-prima da memória.

A personagem menina dos livros, vinda do mundo de histórias, está sentada em uma jangada, com aquele mesmo livro da capa nas mãos. O que impulsiona sua jangada não é uma vela comum, mas sim uma página amarelada de livro. 

Ela nos conta que flutua em sua imaginação e o que vemos nas imagens é um mar de letras, composto por trechos de histórias criteriosamente escolhidas para dialogar com cada momento dessa travessia. Nesse início, são excertos de Robinson Crusoé, O conde de Monte Cristo e A Ilha do Tesouro. Logo o mar se transforma em uma enorme onda que se projeta sobre a casa do menino que passará a acompanhá-la: “eu naveguei pelo mar das palavras para perguntar se você quer vir comigo”. Antes que o menino e o leitor aceitem o convite, é preciso lembrar do esquecimento. 

Nessa parte da narrativa, o menino observa um adulto lendo jornal. Em suas páginas as palavras não fazem sentido. Diferentemente das palavras que formam o mar de histórias nas páginas anteriores, nessas, as palavras se repetem exaustivamente, sob os títulos “Coisas Importantes/ Coisas Sérias/ Negócios/ Os fatos”. E projetam, nos óculos do adulto, apenas números. Nesse caso, as palavras não habitam a imaginação, não libertam e não fazem sentido.

A menina dá as mãos para o menino e ambos seguem viagem por cenários que logo reconhecemos, mas que são apresentados com originalidade e beleza: lombadas de livros viram tronco de árvore em meio à floresta, letras e palavras desenham montanhas, refrões de cantigas de ninar formam nuvens. O passeio dos dois chega, enfim, à casa de invenção, “onde todos podem entrar”. O livro vermelho com fechadura dourada agora está nas mãos do menino. A chave que tudo abre só aparece na última página e vem com uma etiqueta onde se lê: “porque a imaginação é livre.”

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.