Infantojuvenil,
Sr. Pug contra o alto-astral
Duelo de estilos e cores faz divertida crítica à sociedade de consumo e à sua enxurrada de pôneis e personagens fofos e sem personalidade
15nov2018 | Edição #9 mar.2018O Sr. Pug é apresentado logo nas primeiras páginas: o dorminhoco cão bípede não parece dar atenção aos momentos que precedem o início oficial da história e se remexe sob o lençol — na folha de rosto e sob a ficha catalográfica. É na primeira página dupla que Pug resolve acordar diante de um relógio despertador, quase de seu tamanho, que marca 11h48. Sem conseguir abrir os olhos, fica em dúvida se é mesmo o caso de se levantar, já que “o dia quase acabou”.
O lápis rápido e com poucas cores do autor alemão Sebastian Meschenmoser nos conduz a cenas de um animal mal-humorado que se arrasta pela casa num difícil começo de dia: não há café na xícara nem leite na geladeira, e o jornal está molhado pela chuva. Problemas comuns, que podem acontecer com qualquer pessoa. Já nesse início de história, o Sr. Pug deixa claro a todo leitor de livros infantis que animais falantes não necessariamente habitam universos mágicos e freneticamente multicoloridos, imersos em paisagens impactantes. A sua residência, por exemplo, tem a tipologia de uma singela casinha de cachorro, mas se apresenta numa escala maior. Alguns móveis são aqueles típicos de uma casa de humanos, como a geladeira, mas a quantidade de objetos é mínima. Os desejos do Sr. Pug são modestos e os espaços de sua morada também.
A narrativa do livro se desenvolve bem, apresentando pouco texto por página dupla (quando há texto), situações variadas, enquadramentos interessantes, numa leitura fluida e de ritmo agradável. Meschenmoser, ao criar a história, fez primeiro os desenhos e inseriu posteriormente o texto, só escrevendo o necessário. O desenho confere profundidade aos espaços, volumetria aos objetos e, por vezes, se aprofunda no detalhamento de algum elemento da casa, como uma xícara levemente trincada sobre a mesa.
Mas basta começarmos a nos familiarizar com o lugar para que uma certa figura, parruda e híbrida, que circula de roupão pela cozinha, cause estranhamento. Os traços espontâneos de um sketch expressam adequadamente o jeitão desencanado do Sr. Pug. Limpeza e verniz não é com ele. O mundo dele não é afeito a jogos de cena: Pug é personagem que senta na privada com um bode daqueles e não dá satisfações nem sorrisos forçados para os jovens leitores.
Os resmungos do cachorro são, no entanto, interrompidos pela aparição repentina de uma pequena fada. Ela dá a Pug o direito a três desejos e exibe uma ampla lista de possibilidades que julga irresistíveis. Ao contrário do estilo adotado até aquele momento, a fada e todas suas sugestões são representadas por um desenho colorido, que contrasta com o tom quase monocromático do Sr. Pug. As opções de desejos oferecidas pelo pequeno ser mágico pipocam de modo histriônico, chamativas e sedutoras.
Estilos
O recurso a estilos diferentes é um dos aspectos interessantes do livro. Não são apenas uma roupagem complementar à história, não se trata de estilo pelo estilo. Após o primeiro “plim!” da fada, o inesperado grafismo fofo e colorido se destaca da representação e vira informação gráfica. Invade a história para ser o foco das atenções e levantar comentários. É de certo modo uma caricatura, pois o artista soube realçar características dessa felicidade idealizada de modo a fazê-la mais evidente.
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Assim como o mestre do desenho Saul Steinberg (1914-99), Meschenmoser recorre à paródia de estilo como crítica de costumes. As semelhanças com o capista da revista The New Yorker residem mais nesse aspecto, pois o tom de Sebastian não é intelectual nem elegante: descamba para o humor ácido. O escracho surte efeito e é uma das qualidades do trabalho.
No livro, Sebastian contrapõe as promessas de felicidade vendidas pela sociedade de consumo — com sua enxurrada de pôneis saltitantes, piscinas, carros, olhos arregalados e largos sorrisos calculados — às escolhas pessoais e específicas de um personagem com personalidade própria. Questiona, portanto, a sedução desses produtos, tidos como perfeitos e irresistíveis, modelos para toda a sociedade, tantas vezes venerados por mentalidades moralistas avessas a diferenças. Sebastian Meschenmoser também nos leva a pensar nas inúmeras abordagens de tantos livros infantis que apostam na alegria superficial cheia de clichês, sem qualquer provocação ou problematização de temas.
Não irei me antecipar e dizer o que o Sr. Pug irá inesperadamente fazer com os três desejos e com a fada. Mas posso adiantar que esse não é o costumeiro conto de fadas com seu óbvio e tradicional final feliz.
Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.