Infantojuvenil,

Lúdico e interativo

Exposição relembra o trabalho de Bruno Munari, criador de importantes livros para crianças

24out2019 | Edição #28 nov.2019

O ponto de partida para as ilustrações de rostos que o italiano Bruno Munari (1907-98) apresentou na publicação Guardiamoci negli occhi [Nos olhemos nos olhos] (1970) foram três furinhos circulares, dispostos de modo igual em todas as folhas. A abordagem com dois furos no alto e outro maior centralizado logo abaixo os olhos e uma boca sugere uma face, como aquelas que vemos em tomadas elétricas e alguns objetos do cotidiano. Ao redor dessas demarcações foram elaboradas soluções diversas, que variam caso a caso: finas linhas circulares, blocos retangulares, manchas, sucessões de traços paralelos, caminhos feitos de pontinhos, pontos agrupados em áreas etc. 

O resultado são desenhos por vezes quase abstratos, que atuam como “máscaras de estilo”. Teria esse trabalho sido criado para o público infantil ou adulto? Como em muitas obras de Munari, gestos simples em sua amplitude são capazes de enriquecer a percepção de pessoas de todas as idades.


Alfabeto lucini (1987)

Algumas imagens do livro compõem a divulgação da exposição Bruno Munari: a mudança é a única constante no universo, aberta em São Paulo, no dia 4 de setembro, pelo Museu da Casa Brasileira (MCB) e Istituto Italiano di Cultura San Paolo. Com curadoria de Alberto Salvadori, a mostra que fica em cartaz até 10 de novembro no MCB  apresenta 117 trabalhos do designer e artista italiano, dando uma visão geral do que foi produzido desde os anos 1930 até o final de sua carreira. 

Estão expostos exemplares raros de livros de arte, experimentos com luz em superfícies diversas, esculturas como De Viagem, Côncavo Convexo e outros trabalhos que evidenciam a grande extensão das investigações desse multiartista, com contribuições nos campos da cultura material e imaterial, nas artes, no design e na educação. Há também obras mais voltadas para as crianças, como a peça Habitáculo, estrutura multifuncional que permite a recomposição de um espaço pessoal. E os livros ilustrados, área em que Munari desempenhou papel importante pelo modo como investigou as suas inúmeras peculiaridades.

Seus brinquedos são mais interessados na experiência criativa do que na ideia de ‘ganhar ou perder’

A atenção especial para o universo infantil surge, em sua produção, com o nascimento de seu filho Alberto, em 1940, e a subsequente criação de brinquedos e livros. Em 1953, Munari produziu Zizi, o macaco, um boneco de grande maleabilidade que podia assumir várias posições. Não era apenas bonito, mas interessante para ser manuseado. Trata-se de um belo exemplo sobre como as características de
determinados materiais podem ser exploradas para gerar resultados inusitados, contrariando a convenção; no caso, a espuma de borracha foi empregada em um brinquedo, em vez do uso corriqueiro em sofás e poltronas.  

Brinquedos

Durante os anos 1960 e 1970, Munari desenvolveu brinquedos para a editora Danese, alguns deles em parceria com Giovanni Belgrano. Em todos esses casos, a criança é a grande protagonista que aprende a explorar o mundo enquanto se diverte. Uma importante referência é Più e meno [Mais e menos] (1970), composto de diversas transparências, com ilustrações diferentes impressas no formato 15 x 15 cm. Imagens de gramados, árvores, morcegos, chuva, homenzinhos de bicicleta e outras podem ser combinadas e recombinadas, gerando inúmeras composições e situações. 

Metti le foglie [Coloque as folhas] (1973) apresenta peças ilustradas aptas a receber carimbos de folhas e animais. O brinquedo Labirinto (1973) disponibiliza peças que podem ser encaixadas na malha de reentrâncias de um tabuleiro, atuando como paredes estampadas que definem os diversos espaços de um lugar. Obras como essa incentivam os participantes a investigar soluções e ter surpresas. São brinquedos mais interessados na experiência criativa do que na ideia competitiva de “ganhar ou perder”.

Os livros de Bruno Munari também trazem esse viés lúdico e interativo. Le Macchine di Munari [As máquinas de Munari], lançado originalmente em 1942, apresenta em cada página dupla uma máquina absurda, composta de parafernálias: no lugar de peças de metal, temos objetos e personagens como um ovo, uma bengala, uma tartaruga, uma lâmpada, um caracol. Conectadas por fios, roldanas, apoios de materiais diversos, por vezes apenas dispostos em proximidade, essas peças geram sequências de causa e efeito inesperadas.

Em 1945, a editora Mondadori lançou sua inovadora série de livros infantis. Publicações como Toc Toc. Chi è? Apri la porta [Quem é? Abra a porta] e Mai contenti! [Nunca satisfeito] (1945) enfatizam as ilustrações sobre o texto e apresentam belos desenhos coloridos em composições conscientes dos espaços em branco das páginas. Um dos atrativos dessa série é a exploração de abas que podem ser manuseadas, abertas e fechadas como janelas, promovendo surpresas na leitura.

Interessado em explorar as potencialidades do livro, muitas vezes eclipsadas pelo entendimento do texto como elemento principal, o designer italiano passou a desenvolver soluções depuradas e sem linguagem verbal, que conferiam ênfase ao papel, formato, encadernação, tinta, dobras, cortes, transparências etc. Criou os primeiros “livros ilegíveis” em 1949, uma produção que se estendeu pelo tempo. Um forte defensor da democratização da arte, o designer italiano gerou objetos lúdicos acessíveis a pessoas de qualquer idade e origem.

Experimentações

Bruno Munari explorou tais recursos em livros ilustrados com textos curtos, como em Na noite escura (1956), lançado no Brasil pela Cosac Naify, em 2007. A obra se divide em três partes: a primeira é composta de páginas de fundo preto com personagens caracterizados por silhuetas azul-escuras. Nesse ambiente noturno, um pequeno furinho, recortado sempre no mesmo ponto, brilha com fundo amarelo, instigando o leitor. A sequência seguinte traz transparências que exploram sobreposições de vegetação e habitantes da mata. Por fim, variações no corte de buracos sobrepostos em páginas acinzentadas sugerem a profundidade de uma gruta cheia de surpresas.

Em 1979, Munari lançou pela Danese uma série de pré-livros: publicações que procuravam incentivar crianças bem pequenas a experimentar o livro de modo diferente. Partindo do questionamento “o que faz um livro ser um livro para crianças?”, o designer explorou variados materiais e estímulos sensoriais, em objetos depurados e sem texto. A intenção foi proporcionar às crianças familiaridade com o objeto, levando em conta seu repertório e peculiaridades da idade. As doze publicações de mesmo tamanho, em formato quadrado de 10 x 10 cm para caber em mãos pequeninas, trazem o título “livro” na capa e quarta capa, deixando em aberto onde começaria e terminaria a leitura.

Defensor da democratização da arte, seus objetos são acessíveis a todas as pessoas

Uma série de três livros foi lançada alguns anos atrás pela Corraini, todas baseadas no conhecido Chapeuzinho vermelho, publicado nos anos 1970 para a série Tantibambini, da editora Einaudi. Nessa obra, o designer recorre a procedimentos criativos para gerar surpresas e enaltecer, em cada livro, uma cor diferente, tornando-a protagonista. Com Chapeuzinho Verde, a história se passa na floresta, e as situações são ilustradas de modo leve com desenho a traço e pintura. Já em Chapeuzinho Amarelo, o caos do ambiente urbano, representado por ousadas experimentações com xerox, contrasta com os singelos desenhos da personagem. E em Chapeuzinho Branco, a história acontece na neve e as cenas acabam sendo sugeridas pelo texto, em minimalistas páginas brancas abertas à imaginação do leitor.

Bruno Munari evidencia, ao longo de sua carreira, uma postura criativa baseada na experimentação e na busca por soluções decorrentes dos desafios de cada trabalho. Como resultado, temos nos livros, por exemplo, abordagens e desenhos bastante variados, diferentes da obra do típico artista gráfico marcado por apenas um estilo. Mais do que tudo, suas ilustrações não se restringem à mera apreciação de cada peça isolada, mas à resolução dos aspectos narrativos e à integração com o projeto gráfico. Trata-se, portanto, de um artista consciente da linguagem específica do livro ilustrado. Podemos estender tal lógica e modo de criar aos inúmeros campos das artes visuais e do design gerando obras instigantes para adultos e crianças.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Daniel Bueno

É professor da Ebac, artista gráfico e quadrinista. Ilustrou A janela de esquina de meu primo, de Hoffmann (CosacNaify).

Matéria publicada na edição impressa #28 nov.2019 em outubro de 2019.