Infantojuvenil,

Porcos e homens

Sai adaptação gráfica do romance clássico do mesmo autor de 1984

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Práticas políticas como disseminar notícias falsas, valer-se do medo como instrumento de controle, suprimir progressivamente direitos e em contrapartida aumentar privilégios e reprimir violenta e publicamente os protestos estão na essência da narrativa distópica criada por George Orwell em 1945. As semelhanças entre o Brasil de 2018 e a Granja do Solar são muitas: as fake news espalhadas por corvos, o armamento ostensivo como forma de proteção, as traições e golpes desferidos aos trabalhadores na disputa pelo poder. 

Adaptado para os quadrinhos pelo artista gaúcho Odyr, cujas tirinhas já frequentaram as páginas de diversos jornais brasileiros, A revolução dos bichos ganha contornos realistas com o grande espaço que a pintura em tinta acrílica ocupa — as pinceladas fortes imprimem textura e volume às páginas dessa alegoria. 

Em entrevista, Odyr afirma que, ao mesmo tempo que condensou o texto ao concentrar a trama em torno dos porcos Napoleão e Bola-de-Neve, expandiu as cenas que lhe pareceram atemporais, como algumas batalhas. O resultado visual, belíssimo, decorre da precisão com que os recursos gráficos são usados, permitindo ao leitor um percurso mais fluido pela harmoniosa alternância entre a leitura do texto e a da imagem. 

Retratos dos bichos 

Tendo se baseado na tradução de Heitor Aquino Ferreira, publicada na edição do romance pela Companhia das Letras, o artista manteve trechos memoráveis do texto clássico, como uma das falas iniciais do velho Major, o porco mais respeitado da Granja: “Jamais um animal deverá tiranizar outros animais. Fortes ou fracos, espertos ou simplórios, somos todos irmãos. Todos os animais são iguais”. 

Essa fala não é impressa dentro de um balão, recurso pouco empregado nessa adaptação. Destacada no centro da página, ela é ilustrada pelo retrato de cada um dos bichos que ouviam, concentrados e orgulhosos, o discurso com o qual se identificavam. A afirmação inicialmente remetia ao princípio básico da igualdade, um dos sete mandamentos do “animalismo”, sistema criado pelos bichos para organizar a sublevação. 

Numa clara alegoria aos sistemas totalitários, passa a haver disputa de poder entre os porcos, incluindo traições, torturas e execuções públicas

A história do livro pode ser resumida a uma rebelião provocada pelos habitantes da Granja do Solar. Revoltados pelas más condições de vida, os bichos são comandados pelos porcos, que se consideravam os mais inteligentes. Um diferencial dos porcos é o conhecimento da leitura e da escrita, que utilizam para articular planos e estratégias de exploração dos outros animais. Numa clara alegoria aos sistemas totalitários, passa a haver disputa de poder entre os porcos, incluindo traições, torturas e execuções públicas. 

Na adaptação, os sete mandamentos são escritos nas paredes do celeiro da Granja; nas páginas finais do livro, a mesma parede aparece, agora alterada, com os dizeres substituídos pela máxima que passa a imperar no Solar dos Bichos: “Todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros”. 

A escolha da parede como suporte para o registro dos princípios remete à provisoriedade: a tinta desbotada pelo tempo pode ser apagada, esquecida. Como diz o narrador, “depois disso, nada mais pareceu estranho”. Caminhando para o desfecho, essa frase marca o momento em que os porcos passam a ser retratados com roupas humanas, andando sobre duas patas, tais como o homem. 

As páginas finais retratam um banquete de negócios no qual os granjeiros vizinhos cumprimentam os porcos pelo brilhante sistema de trabalho: “Ordem e disciplina. Os animais inferiores trabalhando mais e recebendo menos do que quaisquer outros animais do condado”. 

Entre homens e porcos, já não se distinguem discursos, expressões, fisionomias. Tudo se assemelha e se traduz na última frase: “As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível dizer qual era qual”.

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.