Infantojuvenil,
A dança da vida
Em imagens vertiginosas, livro trata de modo contundente a relação entre mãe e filho
01out2019 | Edição #27 out.2019É de desconfiar que, para ter merecido o Bologna Ragazzi Award, em 2016, Meu pequenino provoque rebuliço em águas profundas, uma agitação mais intensa do que faz supor uma primeira folheada. Ele pode passar por um singelo flip book de ilustrações delicadas e texto conciso que, através das figuras de uma mãe e um filho dançando pelas páginas, tematiza a hereditariedade e o ciclo da vida. No entanto, por mais precisa que seja essa descrição da obra — mais uma parceria entre os suíços Germano Zullo e Albertine, escritor e ilustradora —, ela não dá conta da densidade do singelo Meu pequenino, publicado no Brasil pela Amelì. Ao se retomar o livro para repetidas leituras, como adoram as crianças, ele revela aberturas para um mergulho vertiginoso no pas de deux de mãe e filho.
Os giros de sua dança são um achado gráfico para uma das riquezas da obra, a alternância de pontos de vista. Estes são ao menos dois: o do filho, que se vê desejado, abraçado, nutrido enquanto cresce, e o da mãe, que enuncia as frases que acompanham as ilustrações — “Eu te esperava. Meu bebê, meu menino, meu pequenino! Agora você está aqui. Comigo”.
A partir do olhar dela, pode-se vivenciar a miríade de sentimentos que acompanham a maternidade (quase só os bons, vale observar, e apenas aqueles direcionados ao filho): a expectativa da chegada do bebê e o júbilo de tê-lo consigo, o orgulho, a intimidade da companhia que ele lhe faz, o deleite em trazê-lo no colo e beijar seus cabelos, a nada disfarçada vaidade em vê-lo crescer à sua semelhança. Pelos olhos do filho, a mãe imensa é, no início, refúgio e conforto; depois, guia e mestre; então uma mulher que, à medida que encolhe (e, por fim, some), passa a ser ela mesma acolhida. Estamos nos dois lugares ao mesmo tempo, pais e filhos, e conforme avançamos as páginas nos percebemos em uma espiral que vai se aprofundando nos sentidos dessa relação.
Homem e mulher
O que vem antes e depois da dança atesta a visceralidade dessa ligação, também graficamente: duas figuras desorientadas, solitárias, que abrem e fecham o livro, a mulher de mãos vazias da primeira página e o homenzarrão de braços pendentes ao final. É em sua coreografia de amor fusional que se completam, um bailado que, se é uma exaltação desse vínculo, não deixa de ser também um comentário sobre a tautologia e o autismo da relação de mãe e filho.
Observem-se os corpos. São, desde o início e até o fim, uma mulher e um homem — não um menino; um homem, sem traços infantis ou alterações morfológicas além de uma barbicha discreta em certo momento — que se enroscam, não deixam de se tocar, em abraços e carinhos que fazem transparecer o prazer pelo toque, pelo cheiro, em suma a estimulação pelos sentidos em uma dinâmica já bastante estudada pelos especialistas.
O olhar, então: da segunda à penúltima página, quando estão em companhia um do outro, mulher e homem/ mãe e filho não desviam de si mesmos, em uma fixação que oblitera qualquer indício de mundo exterior, como mostra a própria página em branco ao redor do casal/dupla.
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O discurso, por fim. No texto que acompanha as imagens, a mãe ensaia dizer tudo — tudo! — ao filho. Começa contando que precisa falar, e comenta que é importante, e pergunta se ele a entende, e quer repetir, e o exalta, e promete a grande história. Esse discurso amoroso em solavancos nunca se resolve, construindo não uma narrativa — embora haja o começo e o fim, e talvez um recomeço em outro lugar —, mas uma imagem, parada no tempo: “a nossa história”, ou, antes, “nós”.
Estamos nos dois lugares ao mesmo tempo, pais e filhos, aprofundando-nos nos sentidos dessa relação
Um plural inventado pela mãe, cumpre assumir. É ela quem tem a voz, como indicam o título e o texto. Desde o início, recebe o filho como alguém que está ali, com ela, e não consegue largá-lo até o fim — o seu fim —; uma aderência que, em mais uma curva descendente de leitura, pode ir dar nos sentimentos nem tão bons assim da maternidade (e da criação dos meninos-homens). Tal desconforto se anuncia progressivamente, mas é no ato de fechar o livro, ao se deparar com um homem imenso que corresponderia ao “meu pequenino”, ao se concluir a inversão de tamanho das figuras, que se passa a perguntar: para quem foi feito esse livro infantil?
Uma observação final — e irônica —, para não dizer que não se falou do pai, ausente do livro e da relação entre mãe e filho: o texto que justifica a premiação em Bolonha assinala que Meu pequenino é “uma narrativa com um registro feito de subtrações”. Somos nós que, na leitura, nos tornamos um pouco pai e desconfiamos dos limites que se devem impor nessa dança de vida e morte.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.
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