Literatura brasileira,

Me escrevam, me escrevam

Livro pretende abranger a totalidade da correspondência de Clarice Lispector com quase trezentas cartas, algumas inéditas

25set2020 | Edição #40 dez.2020

Clarice não dizia sua idade, e apenas a data do falecimento está gravada na lápide no Cemitério Comunal Israelita do Caju, no norte do Rio de Janeiro: 9 de dezembro de 1977. Estabeleceu-se, na maioria dos documentos emitidos depois de sua família chegar ao Brasil em 1921, que foi no 10 de dezembro de cem anos atrás que ela nasceu, em Tchechelnik, um lugarejo na Ucrânia, quando seus pais fugiam das perseguições aos judeus. E é por isso que, neste 2020, ações como a reedição de sua obra completa marcam um ano de comemorações.

O que aconteceu no período de 57 anos entre esses dois dezembros foi reconstituído em biografias e biobibliografias, pesquisas acadêmicas, exposições, reportagens, inúmeras reiterações mais ou menos dos mesmos fatos e declarações, a partir dos primeiros anos depois de sua morte: a infância no Recife e a morte da mãe doente; a Faculdade de Direito, o casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente e a mudança para o exterior logo após a publicação do primeiro romance, Perto do coração selvagem, em 1943; Nápoles e o fim da guerra, Berna do “silêncio terrível” suíço, seis meses em Torquay (Inglaterra) e oito anos em Washington, D.C. — dezesseis anos morando fora do Brasil, com rápidas passagens pelo país, uma vasta correspondência com amigos e as duas irmãs tentando dar conta da distância, mais dois romances e alguns contos; a separação do marido, a dificuldade financeira e a intensa colaboração com a imprensa; o bairro do Leme, os romances, os contos e o incêndio de 1966 que lhe queimou o quarto e o corpo, inclusive a mão direita, dificultando a escrita; reconhecimento, prêmios, convites para eventos e entrevistas, como a do único registro audiovisual que se tem de Clarice, de fevereiro de 1977, entrevista transmitida apenas depois de sua morte e que nos dá a imagem de uma mulher arisca, triste (ela diz que está triste porque está cansada, em geral é alegre), de silêncios.

Percorrer esse material pode dar uma impressão de saturação, e talvez o que nos leve a repetir essas informações, buscando uma solução para o enigma, seja o fascínio que Clarice ainda provoca. Comentários dessa entrevista disponível no YouTube dão conta do susto, da admiração e da identificação que ela provoca nos leitores, além de um desejo de apropriação e até mesmo de ciúme por parte de alguns pesquisadores, biógrafos e artistas que lidam com sua obra.

Quando se anuncia, então, que cartas inéditas serão publicadas em livro, como prometeu a editora Rocco para esta sexta-feira, 25 de setembro de 2020, alguns de nós sentimos o mundo entrar em uma breve suspensão, desacelerar, como se uma onda de choque interrompesse o que estávamos fazendo — dando comida ao filho, respondendo uma mensagem de trabalho, higienizando pacotes de queijo ralado ou os próprios sapatos na entrada de casa — e, nessa variação abrupta de pressão, desmontasse a aparente estabilização da biografia de Clarice. Há mais a saber.

Work in progress

Há alguma malícia nessa sugestão final de epifania, confesso, e também na repassada vapt-vupt da biografia de Clarice. Tão certo quanto a ignorância de muita gente desses dados é que eles são apenas parâmetros cronológicos para balizar os leitores. Não há biógrafo, pesquisador ou crítico que cogite dar conta de uma vida ou de uma obra em um texto, uma publicação ou mesmo uma coleção, e o lançamento de hoje atesta essa ânsia, a do desejo de inteireza e reconhecimento dessa impossibilidade, em seu próprio título: Todas as cartas.

São quase todas, para começar, e o volume se reconhece como um work in progress ao declarar, no final, que serão incorporadas em edições posteriores as cartas que venham a ser descobertas. Em segundo lugar, os próprios editores assumem ter feito escolhas, seguindo critérios do comitê editorial que descartou correspondências “julgadas pouco representativas ou francamente dispensáveis, tais como as missivas comerciais, bilhetes e recadinhos de caráter efêmero e sem interesse literário ou biográfico”. Há também cartas que a família prefere manter na esfera íntima, como costuma ocorrer. Por fim, o próprio material de que é feito o livro não pode guardar ilusões de totalidade.

“A carta é um material frágil, único, com tantas vicissitudes; é o que por acaso ficou registrado para nós através do tempo”, nos relembra o professor Marcos Antonio de Moraes, pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e organizador de edições da correspondência de Mário de Andrade, como o catatau clássico que reúne as trocas de Mário com Manuel Bandeira.

Essa percepção que soa meio óbvia pode se perder numa compilação de cartas, em que basta folhear umas páginas para passar de maio de 1946 a julho de 1956, e na qual nem sempre se veem reproduções das cartas em si. E assim podem-se perder a singularidade, o contexto, mesmo o vínculo entre os correspondentes — se lembrarmos que uma “análise documentária” pode trazer à tona, por exemplo no papel de pão, na caligrafia, na falha na fita de tinta da máquina de escrever ou em anotações na margem, uma premência para escrever, uma vontade urgente de chegar até o outro.

Para remediar, o que se pode fazer numa edição de correspondência são notas. E a edição de Todas as cartas traz mais de quinhentas notas de rodapé da autoria de Teresa Montero, uma das biógrafas de Clarice, que dão notícia do que acontecia na vida da escritora a cada momento, explica seus hábitos e apresenta seu círculo de amizades — por exemplo, uma nota a uma carta de 14 de agosto de 1951 à cunhada Eliane Gurgel Valente conta que Clarice foi apresentada a Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos nos anos 1940 por Rubem Braga, depois de voltar ao Brasil com o fim da Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1950, conheceria os seus outros grandes amigos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino.

Lacunas

E, ainda assim, as lacunas são inevitáveis, atestando como é escorregadia a nossa tentativa de apreensão de uma vida. As minhas preferidas, por enquanto, estão no conjunto das quinze cartas sobreviventes que Clarice escreveu ao escritor Lúcio Cardoso. Os dois foram colegas de trabalho e, como sintetiza uma nota de rodapé, “ele se tornou uma espécie de mestre e padrinho literário, acompanhou sua trajetória de perto, leu os originais de Perto do coração selvagem e a apresentou a escritores e críticos literários”.

Na ocasião da primeira carta registrada no volume, 13 de julho de 1941, Clarice está em Belo Horizonte, onde Lúcio morou até os dezessete anos, e escreve: “Quanto ao teu fantasma, procuro-o inutilmente pela cidade”. Clarice foi apaixonada por Lúcio, como é sabido, e na crônica “Lúcio Cardoso”, de janeiro de 1969, escreve que ele foi “a pessoa mais importante da minha vida durante a adolescência”. Essa primeira carta para Lúcio tem dois post scriptum: o primeiro traz o endereço do hotel onde está, porque ela esperava uma resposta. Ele nunca escreveu com a frequência que ela gostaria — mas quanto teria sido suficiente?

Numa carta de 1944, de quando está em Nápoles, ela escreve: “Não me esqueça inteiramente, Lúcio, não me considere exilada. A distância nada quer dizer, acredite. Escreva-me coisas, diga-me sobretudo o que você quiser — eu ia dizendo, ou então nada escreva para lhe dar liberdade; mas não, eu exijo uma palavra fria e curta que seja”. O “exijo” está sublinhado na carta, que foi datilografada. Nas margens, ela fez algumas anotações posteriores, à mão — vejo tudo isso numa reprodução impressa de Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib — a edição de Todas as cartas não traz imagens.

O segundo P.S. da carta de 1941 diz assim: “Esta carta você não precisa ‘rasgar’…”. Com reticências no final, ainda, para atiçar. Só os dois sabiam o que elas significam, as aspas e as cartas “rasgadas”, e fico em dúvida se é preciso me estender aqui, preenchendo as lacunas escancaradas pela própria carta: só temos hoje em mãos aquilo que não foi rasgado — ou perdido, ou queimado, ou extraviado, ou…

Autorretrato epistolar

Nada disso em torno de Lúcio integra o conjunto disperso considerado inédito de Todas as cartas: cartas que eram conhecidas mas só tinham aparecido em livros ligados a outros escritores, ou que jamais tinham aparecido em livros e eram só conhecidas por pesquisadores que tiveram acesso a arquivos da escritora, ou que ainda permaneciam ignoradas pelos especialistas. As lacunas das cartas ao Lúcio, uma das minhas obsessões atuais, anoto aqui para ilustrar não só o que fica de fora de uma compilação de correspondência — mesmo aquela preocupada com a totalidade —, mas também as infinitas portas de entrada de uma tal coletânea, que ilumina aspectos biográficos da escritora, e de sua obra, seu processo de criação e sua recepção, da personalidade de quem escreve, de como ela se mostra a cada correspondente, de seu círculo artístico, do contexto histórico e social…

Uma multifacetação que pode conter inclusive contradições, por vezes eliminadas em busca de um delineamento menos desfocado por quem precisa organizar a vida de um biografado. “A edição de cartas é um retrato incompleto”, comenta o professor Marcos de Moraes. “Na leitura, vamos percebendo silêncios e compondo as imagens dos escritores. Ela tem um forte apelo para a nossa atividade como leitores.”

O acesso a esse material nos coloca em certo pé de igualdade com pesquisadores e biógrafos, mas com autonomia e liberdade de quem não tem o objetivo de esboçar alguma conclusão. Essa instigação pode se intensificar ao se constatar que, em Todas as cartas, só está presente a correspondência ativa de Clarice, isto, é, aquelas cartas que ela escreveu — como uma história de que só se conhece uma versão. Ainda que, sim, haja um conjunto de cartas que Clarice recebeu (a correspondência passiva), por exemplo na Fundação Casa de Rui Barbosa, que guarda uma parte de seu acervo (a outra está no Instituto Moreira Salles), Teresa Montero relembra a impossibilidade de se resgatarem algumas respostas importantes. “Não temos, por exemplo, as cartas que Tania e Elisa escreveram”, ela diz, sobre as irmãs de Clarice — e como sempre algo é suprimido nos arquivos. “Lembremos que o quarto de Clarice foi queimado no incêndio em 1966. Teríamos cartas ali? Originais? Não sabemos.”

Nesta primeira edição, quase trezentas correspondências escritas por Clarice foram reunidas, e o editor de Clarice na Rocco, Pedro Karp Vasquez, explica que o propósito maior de Todas as cartas é “oferecer uma espécie de ‘autorretrato epistolar’ de Clarice Lispector”. Não há dúvidas de que a sequência corrida de cartas da escritora cria um fluxo em que se pode abandonar ao prazer da leitura de Clarice Lispector, para além da expectativa do que ainda há a saber.

Biografização

“Parece que eu ganho na releitura, né? O que é um alívio”, disse Clarice nos minutos finais da famosa entrevista de fevereiro de 1977. Nessa entrevista ela repete histórias e a maneira de contá-las — e quem há de culpar Clarice, se essa foi a vida dela —, e sabe-se que a escritora costumava também reciclar escritos que publicava na imprensa. A sensação de déjà vu pode reaparecer na leitura das cartas, por elas terem sido tão exploradas pela crítica nos últimos quarenta anos.

O percurso de biografização de Clarice tem início pouco depois de sua morte, quando sua amiga Olga Borelli, com quem conviveu de perto nos últimos anos de vida e que lhe ajudou a transformar notas em livros, publica o depoimento Esboço para um possível retrato em 1981, com impressões da amiga, relatos de episódios cotidianos e trechos de cartas que Clarice enviou às irmãs. A pesquisadora canadense Claire Varin lança na sequência dois livros sobre a escritora; um deles, Línguas de fogo, que saiu no Canadá em 1990 e no Brasil em 2002, traz material biográfico que ela encontrou no arquivo da Fundação Rui Barbosa antes ainda de ele ser aberto à consulta pública.

Os anos 1990 dão continuidade ao boom de estudos, pesquisas, exposições, adaptações para o teatro e o cinema, e veem chegar a público a pioneira biografia da professora Nádia Battella Gotlib, Clarice, uma vida que se conta, de 1995, derivada de sua tese de livre-docência defendida na Universidade de São Paulo. Dentre o muito que se haveria a relatar destaco também a biografia de 1999 de Teresa Montero, Clarice, eu sou uma pergunta, que será republicada em edição revista e aumentada no segundo semestre de 2021, enriquecida pelas informações que a pesquisadora encontrou ao redigir as notas que percorrem o rodapé de Todas as cartas.

Diálogos literários

Em 2001, Fernando Sabino publica as cartas trocadas entre ele e Clarice durante cerca de duas décadas, lançando pela primeira vez ao mundo um conjunto de missivas da escritora em edição especificamente dedicada a isso; em 2002 viria Correspondências, organizado por Montero. Os dois lançamentos, bastante próximos, impressionam se se tem em conta que, segundo levantamento do professor Marcos de Moraes, foram publicadas no Brasil até hoje apenas 318 edições de correspondências desde o fim do século 19. Mário de Andrade, grande nome da epistolografia nacional, responde a mais de quarenta desse total, e não está de fora de Todas as cartas.

A história é conhecida: incentivada por Sabino, que recebeu do mentor modernista conselhos e comentários sobre sua obra nascente, Clarice envia o exemplar de Perto do coração selvagem a Mário em dezembro de 1943. Em junho de 1944 escreve para ele de Belém, onde permanece durante seis meses antes de se mudar para a Itália, mas nunca recebeu resposta — Sabino informa a Clarice, depois disso, que Mário respondeu, sim, mas a carta não a encontrou mais no Hotel Central, em Belém.

Nessa edição da correspondência é possível conhecer o conteúdo dessa carta. Ela começa: “Acostumei-me de tal forma a contar com o senhor que, embora temendo perturbá-lo e não lhe despertar o menor interesse, escrevo-lhe esta carta”. O extravio segue como um diálogo potencial que não aconteceu, mas, em 2014 o professor Marcos de Moraes, novamente ele, escreveu em sua coluna da revista Pessoa que talvez existam pistas a investigar. Em 2010, um lote de cartas recebidas por Mário chegou ao IEB trazendo a seguinte informação por parte do poeta gaúcho Paulo Armando, em 8 de novembro de 1944: “A carta de Clarice Lispector vai viajar até a Itália. Vou ver se mando pela mala diplomática. Arranjo com o Vinicius [de Morais].”

A edição também traz, em caráter de ineditismo, cartas para João Cabral de Melo Neto que, se colocadas ao lado das sete cartas do poeta publicadas nas Correspondências de 2002, geram uma conversa viva sobre a criação literária. “Essa me parece uma grande descoberta no sentido em que pode abrir uma nova reflexão sobre o diálogo entre os dois ‘pernambucanos’”, comenta Teresa Montero. “Revela-se o quanto Clarice era uma leitora atenta e entusiasmada de sua obra. Ela enxerga no caminho literário de João Cabral um rumo que a entusiasma, que ela parece almejar, e mostra disposição para um diálogo. Como ela fez com Lúcio Cardoso, ela pede ajuda.”

Montei o quebra-cabeça de fevereiro de 1949, por exemplo. No dia 5, em Berna, Clarice escreve: “Estava contando com sua presença para me dar ânimo e para me acordar dessa apatia que este silêncio sem expressão provoca. Não tenho trabalhado nada, e a cabeça está vazia e sem remédio. Nada do que leio me parece bastante, a literatura francesa me cansa, é muito bem acabada. Não sei como chegar a outras coisas, mas preciso tanto. Será que passou o tempo das descobertas? o meu tempo, quero dizer. Imagine que vou começar umas aulas de modelagem: barro pelo menos não usa palavras. É engraçado como eu que gosto tanto do silêncio uso tantas palavras nos meus livros. Estou com grande vontade de revisão geral (não me refiro aos meus livros), vontade de (é horrível dizer) achar ‘uma verdade filosófica’. Que coisa horrível. Qual é o caminho? bem sei, pelo primeiro objeto que estiver à frente. Mas os objetos estão tão bem acabados que já podem ficar silenciosos. Estou falando tanta bobagem que até vou ao cinema.”

Ele responde alguma coisa, não sabemos o quê, ao que ela diz, no dia 12:

“Meu coração bateu de alegria quando vi que você tinha entendido que eu pedia ajuda. Disfarcei como pude o pedido, não por amor-próprio mas por quê, não sei, por encabulamento. Ainda me lembro, quando eu era pequena resolvi um dia me encher de coragem e pedi a uma menina um bracelete que ela usava. Resposta espantada e ofendida: ‘Tá doida, bichinha, isso é de ouro!’ E se você me respondesse assim? porque é de ouro também. Mas já que você não usou a humilhante fórmula, peço-lhe explicitamente ajuda… A coisa está ruim mesmo. Renovar-se está bem. Mas como? Renovar-se não é sobretudo matéria de vida? então nada. Não, não tenho riqueza nenhuma, não tenho nenhuma escolha. E você não tem pobreza. […] Trabalhar está tão duro. Um escultor tem a matéria como maravilhoso começo. Minha cozinheira adora cozinhar porque — lá está a carne! Mas o que é que existe antes da frase escrita? pensamento só é pensamento quando já traz consigo a sua forma, mais ou menos perfeita. Eu preciso fazer uma coisa nova, João Cabral, não a bem da literatura, a bem da vida, era preciso espiar de outro modo, era preciso adivinhar mais, era preciso não sofrer mais — o sofrimento é um parti pris.”

A resposta de João Cabral está registrada nas Correspondências, dia 5 de fevereiro de 1949:

“Estou meio sem jeito para me botar no lugar da menina do bracelete. Na minha carta anterior eu já não lhe tinha confessado, mais ou menos, que o bracelete era de latão? […] Agora, eu pergunto (e nessa pergunta, dada a inutilidade do meu latão, pode haver alguma ajuda): seria v. capaz de continuar escrevendo sem risco de perder a cabeça? É alguém capaz de jogar poker sem dinheiro? Sem arriscar? Estou certo que não. Agora, eu pergunto ainda: serão de maldizer esses momentos de desespero e pessimismo que nos obrigam a começar cada vez, cada livro ou cada poema? Apesar de desagradáveis — eu os atravesso desprezando-os, pintando de feio o ofício de escrever e a escrita — não terão eles uma utilidade? O toureiro não necessita esses vazios para ter em que quebrar a cabeça, com que começar. Porque o touro se encarrega disso.”

Os estudiosos hão de apontar os inúmeros caminhos que se abrem diante desse novo material. É particularmente interessante o que se vai apreender de Clarice como autora que negocia a publicação de sua obra. Já se conheciam as cartas em que ela pede auxílio das irmãs no vaivém editorial; em 2007, o volume Minhas queridas (organizado por Montero) trouxe 120 cartas que Clarice escreveu a Tania e Elisa entre as décadas de 1940 e 50, quando corria o mundo atrás do marido diplomata, e nelas Clarice pede notícias de pagamento e da recepção de sua obra e faz observações sobre os ajustes a serem feitos nos textos.

Em 1954, conta a elas que andou corrigindo a tradução francesa que a editora Plon havia feito de Perto do coração selvagem. “Uma noite, à meia-noite mais ou menos, eu estava tentando ler e corrigir, quando deparei com uma brutalidade de tradução, tão forte, tão inesperada, que, sozinha, mesmo, ri a ponto de chorar”. Apesar da gargalhada, a situação toda a chateou bastante, principalmente por ter entendido que suas correções não seriam acatadas, pois a prova que chegou a suas mãos parecia definitiva. A situação acabou se resolvendo quando, numa troca de cartas com Pierre de Lescure, o editor, Clarice entende que ele havia tentado mostrar a ela a tradução, mas essa comunicação havia se perdido; suas observações acabaram sendo incorporadas depois. Em Todas as cartas, a história editorial ganha contornos apaixonados, pois é possível ler o que ela escreveu a seu editor: uma carta desaforada que se segue a outras em que ela não se cansa de se desculpar.

As cartas a Tania Kaufmann e Elisa Lispector são um universo à parte na correspondência, pela extrema afetividade que Clarice imprime às cartas, a preocupação que revela ter em relação às irmãs e a exasperação pela falta de notícias e cartas que ela dirige especialmente às irmãs. Os assuntos mais comezinhos colorem essa correspondência — arranjos domésticos, viagens, as peripécias dos filhos Pedro e Paulo, roupas, os livros que lê, os filmes a que assiste no cinema. Eliane e Mozart Gurgel Valente, cunhada e irmão de seu marido Maury, são também destinatários dessas novidades e impressões.

Um conjunto considerável de inéditos em Todas as cartas deve estimular novos entendimento das relações familiares. Um lote de seis cartas a Eliane e Mozart traz notícias da rotina em Washington, por exemplo com dois trechos deliciosos, um sobre “essa coisa milagrosa”, um “apis serum” tirado da abelha que “as grã-finas do Rio estão tomando e… remoçando cinco anos no mínimo”; “Parece que é um remédio caro. Mas, segundo dizem, vale a peníssima”. Eliane os envia a Clarice, que em carta seguinte conta: “Fiquei comovida, também por você ter mandado o apis-serum — e danada da vida porque, quando resolvi tomar, a coisa me escapuliu da mão e ficaram inteiros apenas 2 ou 3 envelopes. Estava escrito que não devo ‘rejuvenescer’…”.

O outro trecho de trocas femininas merece ser reproduzido tal como escrito em sua integridade: “Estou para lhe escrever há muito tempo que vi, já uns três ou quatro meses, um filme com Marlon Brando, agora não me ocorre o nome do filme, mas não perca nenhum filme dele, ele é, com o perdão da expressão talvez um pouco forte e emocionada, ele é, como eu ia dizendo: !!!!!!!!!!! Agora me lembro, o nome do filme é The Wild One. Imploro a você não que perca. Como eu ia dizendo, ele é !!!!! Desculpe, Mozart, mas me faltam, com a graça de Deus, as palavras e eu sou obrigada a usar exclamações que sua mulher na certa entenderá. Lembre-se, Mozart, que Eliane e eu humildemente silenciamos quando vocês falam em Marilyn Monroe”.

Outros excertos possivelmente apontam para problemas conjugais que Clarice, bastante discreta, não desenovela — ao menos, não em cartas disponíveis ao público. Em maio de 1954, na primeira carta do lote inédito aos cunhados, relata crises de alguns casais conhecidos deles, para depois comentar “Parece que há um tempo em que todas as coisas amadurecem simultaneamente: e parece que agora é tempo perigoso. Soube de outros casais, mas esses você não conhece”.

Tudo está under control

É em 1957 que começa o lote das inéditas para as irmãs Elisa e Tania, dezessete cartas que avançam no período compilado em Minhas queridas. Há nelas assuntos especialmente delicados no que diz respeito à biografia de Clarice Lispector: as dificuldades com o filho Pedro, que tinha esquizofrenia, e o processo de separação de Maury, que se consolidou com o retorno de Clarice e dos filhos para o Brasil em junho de 1959.

O momento mais delicado de revelações sobre a vida de Clarice Lispector, desde que se passou a escrever sobre ela, se deu em 2009, na época do lançamento de Clarice, biografia do norte-americano Benjamin Moser, também coordenador das traduções da obra da escritora para a língua inglesa. A partir de estudos sobre os pogroms, depoimentos e manuscritos de Elisa Lispector sobre a história da família, que em 2012 seriam publicados como Retratos antigos, Moser propõe a hipótese de que a doença que vitimara a mãe de Clarice ainda na Ucrânia teria sido a sífilis, contraída durante um ato de violência sexual contra ela em um ataque contra os judeus. Não encontrei nenhuma referência a isso em Todas as cartas.

Com relação ao filho mais velho de Clarice, Moser relata que “à medida que Pedro ficava mais doente a sensação de solidão dela foi se tornando implacável”, e conta, desse período em que já moravam no Leme, do comportamento de Pedro, descrevendo alguns episódios. O que cartas às irmãs trazem são detalhes do dia a dia ainda em Washington, as adaptações ligadas à escola, conversas com médicos e tiradas espirituosas do menino.

Esses episódios reforçam a imagem de “mãe da humanidade” que ela um dia atribuiu a si mesma, em citação que circula por diferentes textos, e que é confirmada pela frase escolhida para acompanhar a estátua da escritora e de seu cachorro Ulisses que, desde junho de 2006, recebe fãs para fotografias com a praia do Leme e de Copacabana ao fundo: “Há três coisas para as quais nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra”. Acumulam-se histórias dos meninos crescendo, suas brincadeiras e aprendizados.

Já a separação é especialmente comentada na última carta do pacote, embora menções anteriores a situações de tensão levem a imaginar que é disso que Clarice não está falando. Em junho de 1958, um ano antes da volta ao Brasil, ela comenta com as irmãs que “Maury está indo, por umas 15 vezes, a um médico — para depois resolverem se continuam. […] Como consequência dessas idas ao médico, ele está tomando parte mais ativa aos meninos. (Creio que isso só ficaria uma atividade permanente se ele fizesse análise total.)”, e depois termina a carta tranquilizando-as: “Peço a vocês que não se preocupem? tudo está under control”. Em carta posterior esclarece que a cunhada Eliane poderá “resumir a situação” e escreve: “E não se esqueçam de que estou bem. Já passei por muito pior, só que não eram coisas óbvias. De modo que tenho prática, e sei como me defender por dentro”.

O que se sabia a respeito da separação, até o momento, eram principalmente suas consequências, isto é, a dificuldade financeira em que passou a viver Clarice e sua necessidade de escrever para se sustentar. Moser propõe a interpretação, associando a vida de Clarice aos contos e romances em que o tema do casamento é tratado, de que Clarice nunca fora afeita à ideia de casamento. Chega a dizer: “Em certo sentido as razões específicas por trás da separação de Clarice e Maury são, portanto, supérfluas”. Enumera a dificuldade de viver longe do Brasil e das irmãs por período tão prolongado, do cansaço de Clarice da rotina diplomática, copia no livro uma “carta eloquente” de Maury, pedindo uma segunda chance. Diz, enfim, que “sua constante luta com a depressão e o desespero no exílio não deve ter feito dela uma pessoa fácil de conviver, e Maury também acabara se reprimindo por sua inabilidade em ajudá-la. O comportamento dele refletia mais desespero do que falta de afeição”.

É em casos assim que o acesso a novos materiais pode, no mínimo, acrescentar nuances às leituras, além da empatia evidente que provocam. Nas cartas para as irmãs inclusas agora na correspondência disponível ao público, o lado emocional da questão é tratado explicitamente, sem que ela parecesse buscar consolo, e sim relatar com algum distanciamento o que se passava no casal. No fim de maio de 1959, ela conta que “um dia de manhã Maury me telefonou e me disse que achava que eu devia saber o que eu tinha feito a ele: que ele estava sofrendo do coração e podia morrer de um momento para o outro; que se eu quisesse podia considerar isso como chantage da parte dele”. Ela procura o médico do marido, que esclarece que “uma coisa não tinha a ver com outra”.

Nessa carta incompleta, ela ainda procura avaliar sua situação: “Sensação de culpa, não tenho nenhuma. Milhares de pessoas se divorciam, sem essa consequência [o problema cardíaco]. Provavelmente, se soubéssemos disso há uns dois anos (e não um ano depois de separação), eu ficaria ainda mais confusa sobre o que deveria fazer, e provavelmente teria tomado como papel meu viver com Maury”.

Ela continua no que parece ser uma declaração do seu lado da história. “Também não creio que fizesse bem a ele ou a mim a grande tensão em que vivíamos. Maury, por exemplo, se roía com ciúmes imaginários, e mal aguentava o peso da responsabilidade de eu viver com ele (vivia me vigiando tanto, não por ciúme, mas por qualquer outro motivo, que as festas obrigatórias que íamos eram uma tortura para ele, e eu perdia o mínimo de espontaneidade que se possa ter nessas ocasiões). Com as crianças, nunca sobrecarreguei Maury, porque a situação sempre foi de tal ordem que eu é quem vivia os enormes problemas […] Essa tensão que a responsabilidade, como pai e marido, lhe causava, a ponto de ele claramente fugir a essa responsabilidade (sempre que havia um problema de família, ele me sugeria ir para o Brasil por uns seis meses) — como eu ia dizendo, essa tensão teria sensivelmente diminuído se ele tivesse querido ir quatro anos atrás ao psiquiatra e ver se descobria por que ele preferia sempre e sempre, fugir em vez de encarar, de conversar. […] A verdade é que a pessoa só faz o que quer, mesmo quando o que quer vem contrariar seus próprios interesses mais profundos.”

Quem escreveu esse texto

Mariana Delfini

É jornalista e tradutora.

Matéria publicada na edição impressa #40 dez.2020 em novembro de 2020.