História,
Para além da escravidão
Obra mostra como a subjetividade de Luiz Gama nunca foi definida pelo fato de ter sido escravizado
01ago2020 | Edição #36 ago.2020No momento em que as lutas antirracistas mobilizam, em escala global, reflexões sobre os significados profundos de expressões como “racismo estrutural”, “vidas negras importam” e “parem de nos matar”, a coletânea Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, com textos publicados entre 1864 e 1882, oferece conteúdo bastante apropriado para o público brasileiro. O livro, organizado por Ligia Fonseca Ferreira, figura como uma ferramenta relevante para o diálogo com o passado interessado no entendimento das duradouras dinâmicas de violência cometidas contra a população negra no país.
Última nação das Américas a abolir o escravismo, após ter absorvido o maior contingente de mulheres e homens africanos escravizados via tráfico transatlântico, o Brasil assistiu aos esforços de representantes da elite nacional, marcadamente branca, para instituir narrativas históricas que alegavam a vigência de uma “escravidão branda” e de uma sociedade remida do “ódio entre as raças”. É certo que houve protestos, muitos dos quais protagonizados por pessoas negras, escravizadas e livres, mas a imposição dessa matriz de sentido logrou diminuir o alcance ou mesmo abafar as vozes dissonantes por muito tempo.
Se nos interessa superar essas simplificações com o auxílio do que pensaram esses indivíduos e coletividades silenciadas, ler Luiz Gama torna-se um exercício indispensável, a ser feito sozinho e em grupo. Entre as oportunidades abertas pela leitura de Lições de resistência, em particular, destaco que os posicionamentos tomados pelo autor nos ajudam a perceber a gente negra para além do lugar do “escravo”, mesmo tendo que lidar com o escravismo quase que a todo momento.
Os artigos localizados por Ligia Ferreira dão a ver que a escravidão jamais deu a medida de Luiz Gama ao longo de seus 52 anos de vida, iniciados em Salvador, Bahia, em 21 de junho de 1830. Nasceu livre e, desde que se entendeu como homem, foi como pessoa negra e livre que se afirmou perante quem o admirou e, sobretudo, quem o odiou. Era preciso insistir altivamente no óbvio e na lei para confrontar quem naturalizava o preconceito de cor, não admitia a humanidade e atentava dia após dia contra a liberdade de gente de pele escura. “Eu não sei transigir com a infâmia”, afirmou em 20 de novembro de 1869, no jornal Correio Paulistano.
Soldado
Assim, os oitos anos em que fora ilegalmente escravizado, dos dez aos dezoito anos, em São Paulo, fizeram da criança um soldado, conforme sua própria análise do trauma, compartilhada em carta ao amigo Lúcio de Mendonça. Ao passo que entendia que fora vítima do grave delito de “Reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse da sua liberdade”, previsto no artigo 179 do Código Criminal do Império (sancionado em 1830, meses depois do seu nascimento), Luiz Gama também dimensionava o longo alcance da barbárie que atingia um sem-número de africanos e seus descendentes escravizados à revelia de outra lei, a de 7 de novembro de 1831, que tornava ilegal o tráfico internacional e reconhecia a liberdade de todos que chegassem ao Brasil a partir de então. O desrespeito à lei lhe dava razão de sobra para dizer que, para onde olhava, avistava “homens livres, criminosamente escravizados”.
O mero acesso ao mundo das letras, com efeito, seria pouco para o sujeito cuja trajetória ficaria marcada pelo domínio das leis e por uma capacidade magistral de frustrar caprichos compartilhados por “ministros da coroa, conselheiros de Estado, senadores, deputados, desembargadores, juízes de todas as categorias, autoridades policiais, militares, agentes, professores de institutos científicos […] associados, auxiliares ou compradores de africanos livres”, como registrado no jornal A Província de São Paulo em 1880.
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Afeito ao bom combate, a partir de 1848 Luiz Gama se fez temporariamente “um soldado de pele negra”, ganhando força para se esquivar de desafetos e se firmar como lutador intransigente contra a escravidão e suas sequelas por toda a vida. Para tanto, além de adquirir a licença de rábula — o que permitia atuar como advogado mesmo sem diploma acadêmico —, fez dos jornais espaço estratégico para fortalecer suas empreitadas à luz do direito. Empreitadas essas divididas com outros homens negros livres como ele, a exemplo de Ferreira de Menezes, advogado e jornalista fundador da Gazeta da Tarde, periódico abolicionista da Corte em que publicou com frequência nos anos que antecederam o seu falecimento, em 24 de agosto de 1882.
Em termos metodológicos, cabe ressaltar que, ao dispor os artigos em sequência cronológica, Lições de resistência oferece um acesso didático, uma visão panorâmica a textos dispersos em vários periódicos e conhecidos apenas por pesquisadoras e pesquisadores dedicados aos sabores e dissabores da vida de Luiz Gama, ou às disputas entre abolicionistas e escravistas que ganharam intensidade na década de 1860. Não cabendo a ninguém a propriedade do legado de um homem que não admitia o domínio de um ser humano sobre outro, esse empenho para reunir, inserir notas e introduzir a produção escrita de Gama a novos leitores, que marca o trabalho de Ligia Fonseca, abre caminhos para a ampliação do conjunto de especialistas e a afirmação da relevância do pensamento desse que há tempos foi reconhecido como “precursor do abolicionismo no Brasil”.
Não fosse isso o bastante, a obra reproduz pistas que sinalizam para buscas futuras por escritos ainda restritos às páginas de jornais guardados em arquivos físicos ou digitais. A título de estímulo, em 1869, o próprio Luiz Gama indicou produções datadas de 1863 sem explicitar o local da publicação para em seguida mencionar um artigo a ser localizado em um número de 1865 da Revista Comercial, de Santos. Outra dica a ser considerada é dada em texto biográfico de autoria de Lúcio de Mendonça na Gazeta da Tarde e reproduzido no volume. Diz ele que Luiz Gama fizera uso do pseudônimo “Afro” para marcar sua colaboração no jornal Ypiranga. Adianto que, de fato, ali se encontra pelo menos um artigo de 1867 com tal assinatura, e o referido periódico não foi o único a receber colaborações com essa autoria no mesmo período.
Tendo alcançado neste ano a marca dos 190 anos do seu nascimento, Luiz Gama firma-se cada vez mais na memória coletiva contemporânea nos termos da justiça que fez a si mesmo: “Sou abolicionista, sem reservas; sou cidadão; creio ter cumprido o meu dever”. E há ainda muito que se fazer com os registros referentes ao que viveu e elaborou a partir da então provinciana São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.
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