História,

Onde mora o silêncio

Antropólogo haitiano esmiuça mecanismos do poder que definem as formas de contar o passado e o que vira história ou esquecimento

17out2024

“Forças internacionais contra gangues avançam lentamente no Haiti”.

Essa é a ultima manchete que encontrei sobre o Haiti antes de sentar e escrever a resenha sobre a mais nova tradução para o português do livro do antropólogo haitiano Michel Rolph-Trouillot, Silenciando o passado.

Uma manchete de seis horas atrás, mas que também poderia datar em seis ou sessenta anos, porque fala sobre uma história que se repete. Ou melhor: retrata a repetição de como a história conta a própria história.

Violência exacerbada, caos político, intervenção internacional. É assim que vez por outra o Haiti irrompe no cenário mundial, numa espécie de ciclo que data desde quando a pequena e lucrativa colônia de Saint-Domingue ousou ser palco da maior revolução de escravizados de toda a história. A única revolução escrava que resultou na vitória dos revolucionários, na criação de uma república independente, sem escravidão e comanda por homens negros (alguns ex-escravizados), que alterou boa parte da ordem do sistema colonial escravista. Mas, acima de tudo, uma revolução que gerou um medo até então inédito no Ocidente. Um medo de tal monta que só o silêncio seria capaz de contê-lo.

Senhor de perguntas amplas e ousadas, que pressupõem o diálogo entre local e global, Trouillot elaborou um livro que mais parece uma escavação arqueológica na produção do conhecimento histórico. E para tanto, ele começa com uma distinção simples e precisa.

Por um lado, existe aquilo que aconteceu em tempos pretéritos. Por outro, existe aquilo que se decidiu contar sobre o que aconteceu. Ambos chamamos de história. Mas essas histórias não são sinônimas ou intercambiáveis. Quem habita o espaço entre o passado e a forma como se decidiu contar esse passado é o poder. Um poder que geralmente é exercido por aqueles que definiram o que são as fontes históricas, como os arquivos devem ser organizados (determinando o que deve ou não ser arquivado), os personagens heroificados e aqueles que podem adentrar o oceano do esquecimento.

A outra face desse poder é o silêncio. Decidir calar sobre um episódio ou sobre determinados personagens é uma ferramenta absolutamente eficiente na normalização e normatização do exercício do poder na produção da história. Esse silêncio tem escalas distintas, e sua eficácia se faz sentir tanto na retirada do revolucionário Jean-Baptiste Sans Souci dos anais da Revolução — lembrando que ele foi mais radical que figuras como L’Ouverture e Dessalines, pagando em vida por isso —, como no silêncio quase imaculado que ainda recai sobre a própria Revolução do Haiti, justamente por ela ter sido o inimaginável. Um pacto tácito assinado por todo o Ocidente, que não só virou as costas para o Haiti, como insiste em retratá-lo apenas como uma nação caótica.

Mas dizem que é do caos que vem a luz.

Iluminar o jogo

Ao iluminar o jogo de poder do fazer histórico, Trouillot nos ajuda a entender mais e melhor a própria história do Haiti e nos lembra que ele próprio nunca esteve sozinho. Além de seu pai e seu tio (que lhe contaram as histórias que importavam), existiram também Anténor Firmin, Frédéric Marcelin, Benito Sylvain, Jean Price-Mars. Uma linhagem de haitianos que quebraram o silêncio, dando assim um gosto especial à apresentação dessa edição do livro, do também haitiano Raoul Peck, um especialista em romper silêncios.

Se há um país especialista em contar sua história por meio do silenciamento, esse país é o Brasil. Por isso, essa bela tradução chega num momento interessante e importante do cenário nacional: um momento em que parece haver uma escuta mais atenta para os silêncios que nos constituem. 

Nos últimos anos (e graças aos movimentos sociais), o racismo estrutural, a violência e a desigualdade de gênero, a barbárie que ainda paira sobre a população lgbtqiapn+ e o olhar torto para as pessoas deficientes vêm sendo cada vez mais analisados e debatidos na arena pública, demonstrando que de pacato e harmônico o Brasil não tem nada. Intelectuais negros (brasileiros, caribenhos, estadunidenses e africanos) têm lugar de destaque nessa produção crítica, e na análise mais sistêmica e sistemática do mundo. Por isso, Silenciando o passado, publicado originalmente em 1995, continua sendo tão urgente e necessário. Um clássico que aterrissa em boa hora em solo brasileiro.

E, numa provocação que coloca em prática o que Trouillot nos ensina, podemos reler a manchete que abre esta resenha, lembrando que há um Haiti caótico, mas também há um Haiti para além do caos, e há uma história por traz do caos do Haiti. E como bem disseram Gilberto Gil e Caetano Veloso, mais ou menos ao mesmo tempo em que Trouillot escrevia seu livro: “O Haiti, é aqui”.

Saber onda mora o silêncio é saber compreender e contar a história.

Quem escreveu esse texto

Ynaê Lopes dos Santos

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