Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O dissenso como princípio

As trajetórias de Luiz Gama e Franz Jägerstätter são exemplos de como a resistência é uma estratégia de combate às injustiças

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

Uma vida oculta, filme mais recente de Terrence Malick, conta a história de Franz Jägerstätter, agricultor austríaco condenado à morte pelo regime nazista por se recusar a jurar fidelidade a Hitler e a servir em combate durante a Segunda Guerra Mundial. A estética grandiosa e transcendental de Malick, com muitas tomadas em grande-angular de belas paisagens, é pontuada por embates mais humanos e prosaicos. Em uma cena particularmente intensa, Franz é confrontado pelo juiz momentos antes de ser proferida a sua sentença. Depois de ouvir os motivos morais do dissidente e sua visão sobre certo e errado, o juiz argumenta que o ato de desobediência não terá consequências benéficas para quem quer que seja e pergunta: “Você tem o direito de fazer isso?”. Franz responde: “Tenho o direito de não o fazer?”.

Arrancado de sua família, terras e aldeia, encarcerado e submetido a torturas, ele é informado de que seu sacrifício não seria conhecido e sua ação não resultaria em nenhum efeito prático além do próprio sofrimento e do de sua família. Por levar uma vida anônima, Franz é instado a perceber que suas ações teriam terríveis consequências práticas para si e para seus entes queridos, em nome de um “bem” apenas transcendente (sua absolvição moral e religiosa). Talvez tenha sido esse o aspecto da história que mais fascinou Malick, que optou por reforçar o paradoxo entre o sublime e o corriqueiro na resistência do protagonista, um católico fervoroso de poucas ambições a não ser a lida diária e a convivência afetuosa com a família e a comunidade. Malick omite que Franz, executado pelo regime nazista, foi em 2007 beatificado pela mesma Igreja católica que apoiou o 3º Reich. Personagem “oculto” de seu tempo, tornou-se histórico na posteridade em razão da força moral de sua desobediência.

Cem anos antes do discurso de King, Gama revelava ter um ‘sonho sublime’: o Brasil ‘sem reis e sem escravos’ 

O filme retrata um tipo específico de desobediência à lei, no qual uma pessoa cria um padrão de correção moral unicamente a partir de suas crenças mais íntimas e apela somente a elas a fim de justificar a discordância. Dissensos radicais como esse são um desafio importante para qualquer regime político e ordem jurídica. Um regime autoritário lida com isso apenas por meios coercitivos ou punitivos. Mas, no que chamamos de democracias liberais, um desobediente como Franz talvez fosse considerado um “objetor de consciência”, tivesse sua pena amenizada ou nem fosse punido. A objeção de consciência pode, não sem controvérsia, figurar no cardápio de direitos liberais. Mais consensualmente, é aceita apenas para justificar a recusa de cumprimento do serviço militar. De todo modo, mesmo regimes democráticos apostam na raridade do dissenso radical, pois não contam com mecanismos para lidar com a perturbação criada por recusas reiteradas em obedecer à lei.

Constituir o novo

Gandhi e Martin Luther King foram, como Franz, fiéis devotos, mas articularam motivos de desobediência que ultrapassaram suas convicções mais íntimas. Levaram vidas nada ocultas, e a fé era apenas um aspecto das razões públicas formuladas para justificar suas ações. O fundamento último de seu dissenso pode ter sido religioso, mas seus atos geraram movimentos de força social e política e, sob sua liderança, deram-se mudanças radicais. É a esses personagens que devemos nossa concepção mais atual de desobediência “civil”, que se justifica pelo ideal público a que podemos chamar de civilidade. Esse ideal não tem um significado evidente e consensual, especialmente em comunidades heterogêneas e conflituosas, como as de Gandhi e King — e a nossa. Mas, quando é partilhado por um conjunto de dissidentes, tem o poder de paradoxalmente constituir algo novo pela destituição do que é considerado ilegítimo.

A desobediência civil é uma recusa e pode ser uma resistência. Recusa a ser submetido a um poder que não se justifica, resistência a seus meios de coerção. Numa democracia liberal, o poder político se constitui por meio de um compromisso com o povo segundo o qual o poder constituído pode exigir obediência desde que forneça boas razões para tal. Não há consenso para o que são “boas razões” em abstrato, mas deve estar ao alcance de qualquer um ter a chance de convencer seus pares de que as razões apresentadas não são suficientemente boas para justificar a necessidade de obediência. Se uma parcela considerável da comunidade se convence disso, pode pôr em marcha o processo de destituição institucional que precede a constituição de novos pactos políticos.

A democracia liberal imperfeita que resultou do pacto constitucional de 1988 deveria ter levado ao reconhecimento da desobediência civil como elemento possível da ação política legítima. Mas não é raro encontrar menções que associam a expressão a um crime. É verdade que há um crime chamado de “desobediência” tipificado em nosso Código Penal. Ele é acompanhado pelos crimes de “resistência” e “desacato”. Dos três, o mais mobilizado é o último, pois, enquanto os dois primeiros exigem a existência de uma “ordem legal” a que se resiste ou a que se desobedece, ele é um mero desafio à autoridade, uma “falta de respeito”. A desobediência civil não pode ser abarcada por essas tipificações pois sua ocorrência nas democracias é um meio de questionar a própria existência da “ordem legal” como fundamento da obediência.

Sem reis e sem escravos

Martin Luther King, em sua “Carta de uma prisão em Birmingham” (1963), argumentou que a desobediência de ordens legais mas injustas era uma forma de expressar “o mais elevado respeito ao direito”. Ele conjugou o questionamento à lei com uma forma de defesa da legalidade: apresentou o ato do desobediente como uma manifestação de respeito ao direito em seus princípios fundamentais. Não por acaso, a questão racial esteve no centro do mais importante movimento de desobediência civil do século 20 e retorna ainda hoje em novas manifestações. Nenhuma forma de opressão tem sido tão violentamente eficiente e duradoura quanto o racismo no propósito de excluir enormes contingentes de pessoas da possibilidade de ter e reivindicar direitos.

É comum afirmar que brasileiros não “reagem” como outros povos. Quando eclodiram as manifestações nos eua pela morte de George Floyd, uma atualização do argumento foi apresentada. Haveria, segundo essa avaliação, pouco ou nenhum dissenso radical coletivamente formulado no Brasil, apesar de as violações de direitos de pessoas negras serem aqui também frequentes e trágicas. Ao olharmos de perto o escravagismo, vemos, no entanto, formas particulares de dissentir, que operaram nas margens da complexa relação do país com suas leis. Ligia Fonseca Ferreira lembra na introdução da coletânea Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc) que, quase cem anos antes do famoso discurso de King, Gama revelava ter um “sonho sublime”: o Brasil “sem reis e sem escravos”.

O título do livro dá a pista da estratégia usada por Gama para a conquista do sonho. A resistência foi o caminho de contestação do poder real e do poder do senhor. Se essa resistência operou por dentro da lei, nem por isso deixou de se apresentar como um dissenso radical, pois se movia na direção de uma sociedade republicana e liberta, inteiramente diversa da que então existia. E o autor não se movia a passos lentos, como queriam republicanos que defendiam a abolição gradual do escravagismo. Negro nascido livre que chegou a ser escravizado, defendia mudanças definitivas e atuava para garantir a liberdade de pessoas escravizadas consideradas livres pelo direito. Para isso, lutou para fazer valer a famosa lei “para inglês ver”, da proibição do tráfico negreiro de 1831, e teve embates públicos com juízes que se negavam a decidir pela liberdade das pessoas que representava. Também arrecadou fundos para comprar alforrias e organizou iniciativas de acolhimento e educação de libertos.

Em 1871, ano da Comuna de Paris, foi acusado de ter relação com o movimento comunista internacional, de promover “balbúrdia” e de incitar “insurreições de escravos”. Gama não era comunista e não organizava insurreições, mas pontuou: “Se algum dia […] os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei […] faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu […] aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica”. A vida de Luiz Gama, marcada pelo exercício constante dessa virtude cívica, foi parte do ideal público de civilidade que deu vida à abolição.

Como Jägerstätter, Gama viveu sob o dever autoimposto de fazer o bem diante do verdadeiro mal. O camponês austríaco estava inteiramente sozinho e sua desobediência só pôde ser apoiada por motivos espirituais. Já nosso “advogado dos escravos” viveu sob um ideal publicamente formulado e defendido. Quando o dissenso diante das ordens de autoridades ilegítimas deixa de ser uma convicção íntima e é compartilhado pelo público, a radicalidade dos dissidentes, que pode soar para seu tempo apenas como um crime contra a ordem instaurada, é o prenúncio de mudanças reais.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Luciana Silva Reis

É professora de direito na Universidade Federal de Uberlândia e pesquisadora associada ao Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap.

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.