A partir da análise de 95 livros de autoria de mulheres brasileiras, escritoras ou não, a respeito de aspectos da ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985, Eurídice Figueiredo não só constrói um painel abrangente da produção feminina sobre o assunto, como também estuda o ritmo em que essa produção se desenvolveu. O resultado está em Mulheres contra a ditadura: escrever é (também) uma forma de resistência.
Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (uff), onde continua com atividades na pós-graduação, Eurídice divide o livro em duas partes: na primeira, “Memória e história”, ressalta o dever da memória para se resgatar a arqueologia histórica de um país. Na segunda, “A ditadura pelo viés da ficção”, analisa diversos temas presentes na ficção, tais como a transmissão do trauma na família, os desaparecidos e o impedimento do luto, os mortos sem sepultura, dentre outros não menos terríveis.
Desde seu terceiro livro, Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção, de 2013, a autora vem se acercando do gênero memória. Nos dois seguintes, A literatura como arquivo da ditadura brasileira (2017) e Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras (2020), dá continuidade ao tema que aprofunda neste seu livro recém-lançado.
Apoiada em teóricos, sobretudo franceses, ela estuda o que se manifesta como reinterpretação ou reinvenção do passado, lembrando que toda memória é coletiva porque pertence a um contexto histórico. Desse modo, citando o filósofo francês Paul Ricoeur, chama atenção para “o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si”. Memória e justiça estão, portanto, juntas, quando se trata de olhar para o legado deixado pelos que nos antecederam. Herança curiosamente inseparável de dívida e, assim sendo, necessitada de inventário.
É, pois, também com espírito de inventariante que Eurídice percorre a trajetória autobiográfica ou ficcional de mulheres brasileiras que, de algum modo, viveram a repressão na ditadura ou suas consequências. Se, na primeira parte do livro, ela se detém especialmente na relação da memória com a história, na segunda ela parte para as análises de algumas obras. Não foi difícil verificar que o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade (cnv), criada em novembro de 2012, serviu como propulsor para que 54 dos 81 livros lançados no século atual tenham sido publicados a partir de 2014.
Evidentemente, a cnv sozinha não seria responsável pela safra de depoimentos desde então. Como e por que a memória de militantes ou de membros de suas famílias ficou represada durante meio século? Em primeiro lugar, afirma a autora, pela resistência a lembrar o passado, com suas perdas e seus horrores. Depois, pela ideia cristalizada de que política era primazia dos homens. Finalmente, pela dificuldade na escolha da forma: relato autobiográfico, com nome próprio, para marcar a vivência na história, ou experiência diluída na autoficção, sem que, para isso, ou com isso, diminua a força da narrativa?
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Um e outro mostraram-se importantes. Do ponto de vista do relato autobiográfico, vale uma rápida digressão e volta no tempo: Maria Werneck, nas cento e poucas páginas de Sala 4 (1988), narra sua experiência na antiga Casa de Correção da rua Frei Caneca, 463, especificamente na Sala 4, a cela onde estiveram também Olga Benario, então mulher de Luís Carlos Prestes, e a psiquiatra Nise da Silveira, na década de 30. Penso que é oportuno reivindicar uma nova edição desse livro curto e vigoroso, indispensável para o conhecimento da história da militância feminina no Brasil.
Eurídice afirma que a abordagem da resistência à ditadura e suas implicações foi inaugurada, na ficção, por Lygia Fagundes Telles, com o romance As meninas (1973). Lygia trata do tema do exílio por meio da personagem Lia, que, com as amigas Ana Clara e Lorena, inicialmente morava em um pensionato de freiras. As três veiculam elementos do cenário da época: situação política tumultuada, greves, além de questões femininas relativas a aborto, homossexualidade, violência.
Batalha pela anistia
Até aí as ex-militantes brasileiras ainda não tinham começado a escrever. Nem podiam: a repressão mantinha-se forte sob o governo do presidente Médici (1969-1974). Mas elas não ficaram quietas. Juntando-se às famílias de presos e desaparecidos, se engajaram na batalha pela anistia, articulada em 1975, e que desde o início contou com os Movimentos Feministas pela Anistia. Com a campanha por uma anistia ampla, geral e irrestrita, deflagrada em 1978, a união entre as mulheres crescia e certamente lhes injetaria força para falar. O terreno se preparava para o plantio e colheita de depoimentos, que começariam com Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho (1986), livro organizado por Virginia Valli, irmã da estilista Zuzu Angel, morta em 1976, depois de cinco anos de luta para encontrar o corpo do filho e os responsáveis por seu desaparecimento no Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), em 1971.
Em 2013, pouco depois da criação da CNV, Margareth Rago lançou A aventura de contar-se, em que recolhe depoimentos de sete mulheres, dentre as quais os das irmãs Crimeia de Almeida Schmidt e Maria Amélia de Almeida Teles, cujas atuações políticas continuaram a despeito do desaparecimento do marido de Crimeia, jamais encontrado. Não se pretende citar aqui as obras que se seguiram à de Rago. O que talvez valha a pena enfatizar é que, além de considerações sobre cada uma delas, Eurídice Figueiredo trata de fatos relevantes durante a ditadura e estende a visão sobre transformações sociais e políticas decorrentes do regime. Não exclui, por exemplo, notícias sobre a chamada Torre das Donzelas, nome dado ao cárcere de presas políticas no presídio Tiradentes, em São Paulo, objeto do documentário Torre das donzelas, dirigido por Susanna Lira (2019). Ana Maria Ramos Estevão, ao publicar o seu livro sobre a Torre, substituiu o nome: A torre das guerreiras e outras memórias (2021).
Não poderia ter deixado de mencionar a Casa da Morte de Petrópolis, identificada por Inês Etienne Romeu, que lá foi torturada e da qual foi a única sobrevivente. Neste ano de 2024, informa Eurídice, o projeto de transformação da Casa da Morte em memorial, suspenso nos últimos anos, acaba de ser retomado pela Prefeitura de Petrópolis. Inês Etienne mereceu destaque especial na exposição “Mulheres em luta! Arquivos de memória pública”, no Memorial da Resistência em São Paulo.
A autora não se restringe à análise da atuação de mulheres no processo político. Vários outros temas são abordados, como o da delação, da tortura, da gravidez, do abuso sexual, do luto, do exílio. A autora de Mulheres contra a ditadura não só oferece um panorama rico da participação das mulheres em seis décadas da política brasileira, mas também das maneiras que elas encontraram de continuar atuantes numa sociedade democrática. Uma história de luta feminina, além de revisão de um período de horror que precisa ser lembrado e conhecido pelas novas gerações.
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