História,

O fim do Império por Luiz Gama

Artigos publicados em jornais registram o processo de erosão e esfacelamento da escravidão e da monarquia

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

A coletânea Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro reúne 61 artigos jornalísticos publicados pelo escritor Luiz Gama em periódicos republicanos e abolicionistas. Baiano de Salvador, nascido em 1830, Gama era um homem negro nascido livre cuja liberdade lhe fora suprimida aos dez anos pelo próprio pai, que o vendera como escravo para quitar dívidas de jogo. Na condição de escravizado, chegou a São Paulo; ali, conseguiu encontrar provas irrefutáveis de sua liberdade e fugiu do cativeiro. Tempos depois, imprimia sua grandeza em seus escritos e em suas práticas antiescravistas. Organizado pela pesquisadora e professora Ligia Fonseca Ferreira, o livro abrange o intervalo de 1864 a 1882 de sua produção jornalística, contemplando os últimos escritos e reflexões do abolicionista, daí residindo sua importância. 

Conduzido tardiamente ao universo da literatura, Gama era autodidata e desfilava domínio pleno das letras com erudição absoluta. Especialista em jurisprudência, com autorização especial da Justiça, pôde exercer o ofício na condição de advogado provisionado. Seus conhecimentos jurídicos definiram a liberdade de muitos homens ilegalmente escravizados. Dizia: “São livres! Repetiremos perante o país inteiro, enquanto a peita e a degradação impunemente ousarem afirmar o contrário”. 

Sem acesso à educação formal, Luiz Gama foi iniciado nas primeiras letras aos dezessete anos pelas mãos de um estudante de direito compadecido com sua história. O letramento na segunda metade do século 19 era privilégio de poucos. Apesar disso, ele conseguiu romper os efeitos deletérios da escravidão, integrando-se ao mundo das letras. Em 1859, o jornalista publicava o primeiro trabalho de fôlego, o livro de poemas As primeiras trovas burlescas, esgotado e reeditado em 1861. Nele, Gama debateu temas sociais, românticos e de cunho racial, enquanto seguia padrões da escrita erudita, alinhando seu estilo à produção literária corrente entre os bacharéis. Sua produção textual seguia a tradição literária da época, delineada pela interpenetração de gêneros distintos definidos pelo encontro do jornalismo com a literatura e a política. Seus textos precisos, longos, recheados de termos ácidos, que saltavam da sua pena a fim de fazer galhofas com figuras públicas corruptas e “salteadores da liberdade”, eram baseados na sátira, gênero que criticava costumes, instituições e ideias por meio da ironia e da ridicularização de cenas cotidianas. Também fazia alusões à mitologia grega e arquétipos em seus poemas satíricos e escritos jornalísticos.

Rupturas políticas

Os artigos mergulham nas cenas políticas e sociais da época, registrando o processo de erosão e esfacelamento de duas instituições que sustentavam o Império: a escravidão e a monarquia. Gama repercutiu os efeitos deletérios da Guerra do Paraguai (1864-70) sobre a vida dos escravizados, transformados, do dia para a noite, em soldados, lançados à própria sorte no front à espera da liberdade futura. O conflito foi alimentado por falsas esperanças dos abolicionistas de primeiras águas que miravam no impacto maior de outra batalha na América, a Guerra Civil (1861-65) norte-americana, que levou ao fim da escravidão nos Estados Unidos.

Gama foi invisibilizado pelo projeto de branqueamento e pelo apagamento de intelectuais negros 

Com o recuo do debate abolicionista no Parlamento, Gama nutria os jornais com notícias voltadas às ações de liberdade e desafiava a ordem escravista estampando na imprensa as conquistas jurídicas em ações pela alforria dos escravizados, despertando a fúria dos senhores. Resoluto, elevava o tom crítico em resposta às ameaças de autoridades públicas ou de escravagistas. Enquanto isso, jornais espalhavam por todos os cantos da província de São Paulo notícias sobre a atividade jurídica de Gama. Pequenas notas eram publicadas pelo jornalista anunciando os serviços: “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados”.

Apoiado por ampla rede de colaboradores, Luiz Gama resguardava-se das ameaças e calúnias auferidas.  Nos bastidores dos jornais, teve apoio de seus correligionários republicanos e dos abolicionistas negros Ferreira de Menezes e José do Patrocínio, com quem construiu amizades sólidas.

Em um cenário de crises, outras tensões surgiam no horizonte do Império que levaram a rupturas políticas. Liberais e conservadores esgarçavam o pacto de equilíbrio e de alternância no poder, abrindo caminho aos liberais dissidentes. Encabeçado por Gama e outros personagens de proa da cena política, o Club Radical Paulistano se transformou no Club Republicano, que formou o Partido Republicano, que lutava contra o regime monárquico e recompunha o debate antiescravista. A esse tempo, a Guerra do Paraguai tinha ficado no passado e a Lei do Ventre Livre de 1871, que garantia a liberdade para os filhos de escravizadas, revelava sua ineficácia. A reboque, fermentavam cenas de fugas individuais e coletivas e revoltas escravas. Gama não viveu para ver a abolição e o fim do regime monárquico, pois teve a vida ceifada pelo diabetes em 1882.

Textos dispersos, documentos malconservados e arquivos fechados dificultaram o acesso à obra do autor, situação que foi contornada depois dos anos 2000 com a adequação dos arquivos. As condições materiais por si sós não justificam a omissão histórica em relação à sua obra. Outros fatores contribuíram para esse cenário, como o projeto de branqueamento engendrado pelo Estado na virada do século 19 para o 20 e a política sistemática de apagamento histórico da intelectualidade negra.  

Sob o crivo do ativismo negro, a história-memória de Luiz Gama e de outros personagens foi resguardada à força do tempo, abraçada depois pela historiografia revisionista de 1980, que se dedicou à história dos vencidos, redesenhada por novas fontes que abriram caminhos para um novo fazer histórico. 

Quem escreveu esse texto

Renata Ribeiro Francisco

Doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente leciona na educação básica da rede do Estado de São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.