História,
O nascimento de uma nação
Trilogia de Laurentino Gomes apresenta a história perversa e as consequências trágicas da escravidão
17out2022 | Edição #63No conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, o narrador constata: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. […] Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”.
A trilogia Escravidão, de Laurentino Gomes
A certa altura do primeiro volume da trilogia Escravidão, o escritor Laurentino Gomes também cita a máscara de folha de flandres e, como que num torvelinho, o leitor é levado para esse ambiente cruel e grotesco da escravidão. A menção à máscara, no entanto, não é a única marca daquela maldade. São inúmeros os malfeitos que compõem essa história de dor, sofrimento e desprezo envolvendo os cativos não apenas no Brasil, mas em outras partes do mundo. E o autor não poupa tinta para revirar o objeto de estudo do avesso, mostrando a gravidade do tema. Ao longo de 1.608 páginas, o escritor concebe um amplo panorama da escravidão, tomando como eixo principal o Brasil. Esse tour de force, se não esgota o assunto (e essa não parece ser a ambição do autor), tem tudo para se estabelecer como uma das principais fontes de informação para o grande público a propósito dessa discussão. Dito de outra maneira, não é exagero estimar que a história que Laurentino Gomes apresenta da escravidão será, daqui a alguns anos, a porta de entrada de brasileiros e estrangeiros para um capítulo fundamental da trajetória da formação do Brasil.
Para dar conta do desafio que é escrever a respeito desse tema, o autor se vale de referências teóricas que dão legitimidade à sua proposta e, com isso, busca eliminar qualquer sombra de dúvida a respeito de sua capacidade para escrever esses livros. Nada disso parece ser por acaso. Afinal, não foram poucos os historiadores de formação que se sentiram lesados com a sua prosa excessivamente jornalística, egresso das fileiras da editora Abril, quando da trilogia anterior, 1808, 1822 e 1889. Se, por um lado, esse trabalho o credenciou para voos mais ambiciosos, como esta história da escravidão, por outro fez com que muitos pesquisadores torcessem o nariz pelo estilo arrebatador, pelo apreço pelas curiosidades anedóticas e por adotar uma visão excessivamente crítica em relação a Portugal.
Cautela
Talvez por esse motivo no primeiro livro da série, Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, o autor esteja mais cauteloso na apresentação. Sai de cena o estilo que aproxima o texto de uma revista semanal de informação (uma característica da prosa de 1808) e entra em cartaz uma abordagem mais cuidadosa, preocupada em evitar anacronismos e estar o mais próximo possível da precisão factual — ainda que permaneça, sobretudo no primeiro livro, um apego ao tom grandioso, como em manchetes que berram pelo seu conteúdo: “A escravidão é uma chaga aberta na história humana”, ou: “Praticadas por todas as civilizações desde os primórdios da história”. Mesmo assim, à medida que a narrativa avança, o jornalista se ajusta à dinâmica do historiador não somente no respeito às fontes de informação, mas, sobretudo, no que tange à manutenção de certa sobriedade na escrita. E o leitor pode perceber isso rapidamente.
Chama a atenção o capítulo que destaca como trabalho e escravidão se confundiam no Brasil colonial
Também não passará batido o fato de o autor levar em conta as múltiplas sensibilidades do tema escravidão. Não que precisasse fazê-lo, e é certo que ele poderia utilizar o argumento da liberdade de expressão a esse respeito, mas é digno de nota o destaque, feito já na introdução, para o olhar atento em relação aos termos e às expressões que são “alvos de intenso debate acadêmico”. Nas palavras do escritor: “Essas sutilezas linguísticas são importantes e devem ser levadas em conta”. Gomes sabe que não pode errar.
Para além das questões que podem comprometer o livro antes mesmo de a história começar, o primeiro volume da série se caracteriza por apresentar o contexto que preparou o terreno para que a escravidão fosse normalizada no Brasil e no mundo. O autor avança em camadas, mas não se prende a uma ordem cronológica, a não ser quando lhe parece conveniente. O primeiro capítulo tende a trazer ao leitor um quadro do horror da escravidão, e é aqui que Gomes apela para cenas fortes. Nesse primeiro segmento, a que mais se fixa na imaginação é a da rota dos tubarões, que mudou para poder acompanhar a rota dos navios negreiros. Aqui, vale a pena reforçar um método da escrita do jornalista na trilogia: sempre que a imagem for mais forte, o autor se vale das fontes e de referências que sustentam o apontamento.
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Adiante, o autor trabalha com o objetivo de desmistificar certa leitura enviesada a respeito da escravidão. Gomes busca se distanciar da cepa de escritores que, ao longo deste século 21, se apresentaram pela chave do politicamente incorreto. Nesse quesito, aliás, é importante ressaltar que no primeiro volume Gomes conta com a chancela do africanista Alberto da Costa e Silva, imortal da ABL e um dos principais especialistas no tema da escravidão no Brasil. Para este primeiro livro, ele fez a revisão e notas, enquanto nos demais deu suporte com leituras e outras sugestões. Estamos no campo de uma abordagem que está longe de ser marcada pela polêmica; em vez disso, tem a ver com uma espécie de autorização dos principais escritores do tema.
Nesse sentido, e de volta à querela do politicamente incorreto, Gomes não esconde seu posicionamento em relação ao tema. Não é do seu intuito relativizar a dor e o sofrimento provocados pela escravidão, como quem busca atenuantes para o que houve no passado. Ao mesmo tempo, ele não se esquiva e mostra que traficantes de escravizados também existiam em território africano. Não há contradição aparente no registro que faz, assim como não faltam palavras para condenar as ações da Igreja católica e os bandeirantes, especificamente na figura de Domingos Jorge Velho — sempre atribuindo essas impressões às fontes consultadas.
Gomes escreve uma história da escravidão pautado por referências que alertam para a complexidade do tema, sem hesitar ou colocar em dúvida o seu impacto para a história do país. Essa é a tônica dominante dos três volumes de Escravidão.
No segundo tomo, tal como no primeiro, o autor opta por capítulos que, como ele mesmo escreve na introdução do volume (Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada de dom João ao Brasil), privilegiam certa independência entre si. Há progressão, continuidade temática e até mesmo um eixo, a corrida do ouro em Minas Gerais, que dá um sentido ao texto, mas a narrativa não está encaixada em segmentos estanques. Aqui, o autor lança mão da prosa livre do ensaio para estimular alguma reflexão acerca do tema. Mais do que isso, por se tratar de um livro que flerta com o período sobre o qual Gomes já escreveu anteriormente, ele parece mais à vontade para lidar com os dados e as informações a respeito dessa etapa fundamental para a consolidação da escravidão no país.
Chama a atenção o capítulo que destaca a maneira como trabalho e escravidão se confundiam no Brasil colonial, citando aqui a afirmação do vice-rei André de Melo e Castro, conde de Galveias (presente na epígrafe do segundo volume): “Sem negros não pode haver ouro, açúcar nem tabaco”. No trecho a seguir, Gomes traz mais detalhes daquelas condições de trabalho: “Nos garimpos de diamantes, os escravos trabalhavam seminus usando apenas uma tanga, com os pés mergulhados na lama ou na água, curvados, de frente para o capataz, a fim de peneirar o cascalho no qual se ocultavam as pedras preciosas”. E nesse mesmo capítulo, num dos pontos altos de toda a série, o autor escreve acerca do surgimento do trabalho escravizado urbano, praticado nas casas, como carregar o lixo e os dejetos das residências para as praias. Nesse ambiente, havia uma dinâmica ainda mais perversa: “Existiam também os escravos, de maior confiança, encarregados de supervisionar o trabalho de outros escravos”.
Em outro capítulo do segundo volume, Gomes se dedica a abordar o impacto da violência para o funcionamento da lógica da escravidão. Baseando-se em fontes tão sofisticadas quanto diversas — das pinturas icônicas de Debret e Rugendas ao trabalho da historiadora Katia Mattoso —, o autor registra como o castigo não apenas era comum, como também se pautava pelo exagero: “No século 18, havia notícias de sessões de duzentas, trezentas e até quatrocentas chibatadas. Líderes de quilombos em geral recebiam trezentos açoites por dia”. Esse avanço desproporcional era motivo de alguma preocupação, conforme anota Gomes, posto que havia o temor de que os exageros pudessem provocar a revolta dos escravizados.
O terceiro livro da série (Da Independência do Brasil à Lei Áurea) toma como ponto de partida o célebre quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo (novamente em exposição, com a reabertura do Museu do Ipiranga). O faro jornalístico de Gomes para a releitura de efemérides abre margem para uma leitura mais complexa do sentido do Brasil, haja vista que o autor recupera uma pintura que faz parte do acervo da Biblioteca Nacional da Austrália. Na tela, “Um escravo nu, de mãos atadas a um poste de madeira, está sendo açoitado por outro homem também negro. O sangue escorre em profusão de seu corpo esquálido. Os dedos retesados dos pés indicam a intensidade da dor que sofre a cada golpe”.
Contraponto
Ao estabelecer o paralelo descrito acima, Gomes apresenta um contraponto à versão conciliadora da história do Brasil. Em vez de enxergar no processo da Independência a síntese do voluntarismo de dom Pedro 1º, ele chama a atenção para o castigo dos escravizados, que seguia como tônica dominante do regime. Tendo em vista o que se viu até aqui, estaria o autor se repetindo? Ora, certa prática da escravidão era, sim, recorrente, mas é fundamental atentar para o fato de que Gomes explica por que o Brasil foi o país que mais demorou a acabar com o regime escravista no continente americano. Citando as palavras do historiador Tâmis Parron: “Forjou a base material com que o Estado brasileiro cobriu as despesas públicas”. O terceiro volume conta como a escravidão acabou e analisa por que suas marcas são indeléveis.
Assim como nos outros livros, o autor faz questão de registrar a sua concordância com alguns dos expoentes da intelectualidade brasileira, como Abdias do Nascimento e Florestan Fernandes, que, em suas obras, escreveram a respeito do genocídio negro no Brasil. É interessante observar que o próprio Gomes ressalta que relutou em aceitar que o negro brasileiro tenha enfrentado genocídio. Ao justificar sua escolha, ele também aceita a tese do racismo de natureza estrutural, ajustando a narrativa às características do seu tempo. Sem dúvida, é o texto em que o autor mais se posiciona a respeito desse tema.
O faro jornalístico para a releitura de efemérides abre margem para uma leitura mais complexa do país
No capítulo de abertura do terceiro volume, “Folguedos de libertação”, Gomes recorre a Machado de Assis e a Lima Barreto para apontar o clima de celebração, ainda que houvesse o contraste com o papel a ser desempenhado pelos ex-escravizados a partir daquele momento. Deveriam continuar trabalhando? O autor recupera o registro de um jornal que noticia que, em uma fazenda, os negros então libertos haviam voltado ao trabalho para que não fosse perdida uma grande quantidade de café.
O episódio acima é marcante porque, no livro, ajuda a tecer o fio que articula a história da escravidão e sua relação com a produção cafeeira. Nas palavras de Gomes: “Fazendeiros, senhores de engenho, pecuaristas e produtores de café, donos de latifúndios que se estendiam pelas profundezas do Brasil, foram o alicerce da monarquia brasileira”. Isso significa que a base de sustentação política, financeira e militar decorria desse grupo. Para completar: “E todos, sem exceção, dependiam do trabalho escravo”.
Em outra passagem, o autor mostra todo o desprezo de uma elite que não tinha apreço humanitário pelos escravizados. “O que fazer com os negros do Brasil?” A resposta a essa pergunta pode ser resumida nas motivações pouco humanitárias para o fim da escravidão apresentadas por José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca da Independência, para quem as famílias estariam desenganadas se fossem servidas pelos “infelizes sem honra e religião”.
Protagonistas
O terceiro volume destaca também personagens decisivos da Abolição, como Joaquim Nabuco (com amplo destaque para o seu livro O abolicionismo), Luiz Gama (“o arauto, precursor e abridor de caminhos que levariam ao fim da escravidão”) e André Rebouças (que, depois de uma viagem aos Estados Unidos, descobriu, como diria Milton Santos, que “é difícil ser negro”). Ao final dos capítulos “O precursor” e “A conversão”, o leitor compreende o tamanho do protagonismo desses personagens, algo que a história da escravidão conseguiu até aqui, com muita eficácia, ocultar dos leitores brasileiros.
O encerramento do terceiro volume contrasta com a euforia do capítulo inicial. O autor ressalta, com indicadores vários, como “o passado nem sequer deixou de ser passado”, conforme escreveu William Faulkner. Ao relacionar a desigualdade do presente com a origem escravocrata, Laurentino Gomes faz uma escolha que é, a um só tempo, sombria e definitiva: amarra o destino da nação e do seu povo a um momento que o país insiste em não revisitar, porque aceitou que a ordem humana não se faz sem o grotesco e o cruel.
Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.
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