História,
Momentos decisivos
Cem imagens condensam os episódios e os personagens que marcaram a história do Brasil desde o Segundo Reinado
13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18Que história nos contam estas cem fotografias? As imagens são de alguns de nossos fotógrafos mais importantes. Sebastião Salgado ilustra a corrida do ouro em Serra Pelada e a luta pela terra. Os retratos de Heitor Villa-Lobos, Carmen Miranda e JK são de Jean Manzon, o mais representado. É também dele a foto do deputado Barreto Pinto, de cueca e casaca, que levou à sua cassação, em 1946. O fotógrafo e o repórter David Nasser garantiram que o retrato seria em plano americano, mostrando-o apenas da cintura para cima, mas a revista O Cruzeiro o estampou inteiro.
A escolha de uma foto e o modo como é publicada dão a ela um sentido específico, que pode traduzir o ponto de vista ou a intenção dos autores. Marc Ferrez produziu as mais conhecidas imagens do Rio, mas aqui foram escolhidos dois magníficos registros sociais: um terreiro de café com escravos e o precário interior de uma mina de ouro, com trabalhadores suados. Coube a Augusto Malta exibir a modernidade precoce da avenida Central, hoje Rio Branco, e o corso do Carnaval de 1929.
Impressiona, por sua beleza e qualidade técnica, a imagem da cachoeira de Paulo Afonso feita por Augusto Stahl em 1860. Também a dos índios do Alto Amazonas, de Alberto Frisch (1867), embora visivelmente encenada, como era o hábito nesse tipo de imagem. A missa campal pela abolição da escravatura, fotografada por Antônio Luiz Ferreira em 1888, tem um enquadramento que, em escala maior, não deixa de remeter ao óleo A primeira missa, de Victor Meirelles.
Imagens de intensidade
Os festejos do aniversário de cinco anos da proclamação abrem o capítulo da Primeira República, numa foto de Juan Gutierrez que mostra a passagem das tropas na posse de Prudente de Moraes. Outra imagem que traduz a intensidade do momento é a queima do café no porto de Santos em 1929, de Theodor Preising, retrato da grande depressão que se seguiu à quebra da bolsa de Nova York.
Muitas imagens, mais de vinte, são de fotógrafos não identificados. Assim, o voo pioneiro de Santos Dumont em 1906, a greve geral de 1917, o primeiro voto feminino em 1933, o levante comunista de 1935, e a imagem de Getúlio na Revolução de 30. Também os retratos de organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, do padre Cícero, Pixinguinha e os Oito Batutas, João Gilberto e Os Cariocas, e até de Elis Regina. Não sabemos também de quem são os registros de Jango no comício de 13 de março de 1964, estopim do golpe militar, nem da Marcha da Família, ou ainda do comício das diretas de 1984.
Por aí já se vê que a política ocupa uma parte central da obra. O registro de Evandro Teixeira da tomada do poder pelos militares, em 1964, tem pouca informação e muita alusão, num clima que lembra os filmes de guerra: noite escura, chuva, silhuetas de soldados desenhadas por uma única lâmpada ao fundo. Altamente simbólica também a foto de Guinaldo Nicolaevsky que mostra, em 1979, uma menina que se recusa a cumprimentar o presidente João Figueiredo.
Mais Lidas
Os retratos, que preenchem metade da obra, não são todos alegres. Vemos a família imperial, logo após a Proclamação, antes de partir para o exílio. Dom Pedro 2º, em seu leito de morte em Paris, em foto de Paul Nadar. O último adeus a Getúlio em 1954. Tancredo em 1985 com a junta médica, pouco antes da fatalidade que abriu caminho para o governo Sarney.
O livro é um belo recorte, mas qualquer redução comporta uma dose de arbítrio
Ao lado da história oficial, aparecem os levantes e suas consequências trágicas. Vemos a Revolta da Chibata, o Contestado e a rebelião dos tenentes em 1922. E também um governista degolado por ocasião da Revolução Federalista de 1904, milhares de sertanejos assassinados em Canudos em 1897, e as cabeças decapitadas de Lampião e seu bando em 1938. A foto de Vladimir Herzog enforcado no DOI-Codi em 1975 lembra aos que não viveram essa época que a ditadura está bem longe de ser a maravilha que alguns hoje apregoam. Terrível a imagem do banho de sangue no presídio do Carandiru, palco da morte de 111 detentos em 1992, cujos responsáveis até hoje não tiveram seus julgamentos terminados. A escravidão, nossa grande mácula, aparece em vários registros. Nossa herança perversa de autoritarismo e violência é ilustrada por uma blitz da Polícia Militar em morro carioca, em 1982, em que cinco homens negros aparecem amarrados pelo pescoço com uma grande corda.
Se a história do Brasil não pode caber em cem imagens, a escolha se torna ainda mais difícil ao incluir a arte, a sociedade e a economia. A renúncia de Jânio é aludida na foto de Erno Schneider que mostra o presidente de pés trocados, mas não há registro do tumultuado período da posse do vice-presidente João Goulart e do improvisado parlamentarismo. Embora seja dado destaque à chamada intentona comunista de 1935, faz falta um registro da ditadura de Vargas, único presidente a aparecer várias vezes no livro. Também da fase aguda do terrorismo de direita que culminou com os atentados à OAB e ao Riocentro, decisivos para o fim do regime militar. Ou o movimento pela Anistia. Aparecem, porém, o Cinema Novo, o tropicalismo e a cultura popular, Vinicius de Moraes, Jung com Nise da Silveira, Lygia Clark, Orson Welles, Pelé, Chacrinha e até Roberto Carlos.
É muita coisa. Só no período que vai de 1985 a 2016, temos Ney Matogrosso no Rock em Rio, a promulgação da Constituição de 1988, os caras-pintadas pedindo a saída de Collor, a transmissão de poder de FHC a Lula e a solidão de Dilma (2016). E, ainda, a voz da periferia, a escalada dos evangélicos, a questão de gênero e a sobrevivência dos índios. Os abismos sociais são representados por uma imagem de Cláudia Jaguaribe que contrapõe a favela Santa Marta e o bairro de Botafogo, embora não se diga que é uma alegoria da série “Entre Morros”, em que a topografia é construída pela artista com a superposição de vários registros. A expressiva imagem de Pedro Mascaro que mostra um rio tomado pela lama após o desastre de Mariana é um grito de alerta contra os riscos da exploração predatória de nossos recursos naturais.
O livro é um belo recorte, mas qualquer redução comporta uma dose de arbítrio. A editora Ana Cecilia Impellizieri Martins nos oferece, com certeza, uma instigante conversa sobre nossa terra e nossas circunstâncias. Em um país em que até o passado é incerto (frase cuja autoria também suscita controvérsia), fazer um recorte de mais de 150 anos envolve alto risco, mas publicar não é para os covardes. É importante que essas fotografias sejam vistas, numa época em que os livros de fotografia têm cada vez menos interessados fora dos círculos especializados.
Num país em que milhares de imagens preciosas foram saqueadas das bibliotecas públicas, em patética aventura que chegou a virar filme, devolver nossas imagens aos leitores é essencial. Não caberia tudo, mas o balanço é altamente positivo. Belas imagens, muita informação em uma verdadeira celebração de nosso país, com seus valores e seus problemas. Deve provocar reflexão e controvérsia.
Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.
Porque você leu História
A resistência das mulheres
A partir da análise de 95 livros de autoria de mulheres brasileiras, escritoras ou não, a respeito de aspectos da ditadura militar que vigorou no
DEZEMBRO, 2024