História, Literatura,

Memória pessoal, tragédia coletiva

Crítico da monumentalização da história, autor diz que é o fragmento que nos restitui a realidade

08nov2018 | Edição #2 jun.2017

Marcel tem cinco anos e meio nesta tarde de verão parisiense de 14 de agosto de 1943, durante a República de Vichy. Voltando de um passeio no parque Monceau com Annette, uma jovem que trabalha para seus avós, vê sua família sendo detida pela polícia francesa. Marcel está do outro lado da calçada. É de lá que testemunha a captura, pela máquina de morte nazista, de Maria e Jacques, Sultana e Mercado, Joseph e Rebecca, e Monique: seus pais, seus avós paternos, seus tios, todos originários da Turquia, e uma irmã de três meses de vida. A direção final é Auschwitz, o maior campo de extermínio do Terceiro Reich, não sem antes alguns dias de detenção no exíguo campo francês de Drancy, de onde são deportados cerca de 77 mil judeus detidos na França.

Esse poderia ser o ponto de partida de um testemunho sobre a Shoah, o Holocausto judeu, a partir do relato daquele que, por acaso do clima, talvez da vontade de brincar e certamente da coragem de alguns, sobreviveu. Mas A cena interior (fatos), do escritor e jornalista Marcel Cohen, agora traduzido no Brasil, não começa daí. Tomando distância de uma literatura que reivindica para si a tarefa de reestabelecer a verdade (baseada “em fatos reais”) e reconstituir a história (produzindo uma ilusão de “continuidade” e “unidade”), este breve livro é tão perturbador quanto amoroso, tão dilacerante quanto delicado e tão modesto quanto monumental. Desde o início, Cohen adverte o leitor sobre essa investigação pessoal pelos depósitos da memória: “Por mais que constituam pequenos sedimentos, os fatos reunidos aqui são lacunares demais para que se possa esboçar um retrato”.

Dividido em oito capítulos, cada um dedicado a um de seus familiares exterminados, A cena interior é estruturado por fragmentos e constituído por lembranças de infância, fatos recolhidos de terceiros, testemunhos de parentes, fotografias restantes, objetos sobreviventes, acasos, memória de pequenos gestos, cheiros, sensações e esquecimentos. A pesquisa de toda uma vida encontra-se aqui, tracejada em torno da lacuna e do silêncio, como retratos sempre inacabados e biografias faltantes. A partir da superfície, da atenção persistente e afetiva a objetos e detalhes de aparência insignificante (um copinho para ovos quentes, um violino, uma touca de cabelo, um cachorrinho de pano, uma sopa rala e acinzentada de batata, o cheiro do pó de arroz no interior da bolsa da mãe ou a fragrância da água de colônia do pai), Marcel Cohen devolve aos desaparecidos uma espessura de vida, conferindo-lhes uma imagem possível no lugar da abstração sem rosto dos números da tragédia (sejam oito, 77 mil ou 6 milhões).

Se o projeto nazista era o de fazer desaparecer qualquer vestígio da presença judaica, em A cena interior Cohen faz da defesa do fragmento um projeto estético e ético, recuperando, de um lado, alguns dos traços que foram deixados para trás, e criticando, de outro, a monumentalização da história e a institucionalização da memória. Como o escritor tem defendido desde a sua trilogia Fatos, contrariamente à nossa tendência a crer, é o fragmento, e não o relato bem construído e linear, o tecido familiar romanesco, aquilo que nos restitui a realidade, pois “quanto mais se tenta ocultar os buracos, mais visíveis são os remendos de uma roupa, seja qual for a destreza empregada”.

Marcel só se salvou do Holocausto porque, numa tarde de verão, saiu para brincar  

Em 1996, Marcel Cohen vai assistir à cerimônia de inauguração de uma placa em homenagem às mães e seus bebês internados no Hospital Rothschild, em Paris, local para onde foram levadas sua mãe e irmã, antes da deportação final, e no qual esperavam confinadas pelo pior em meio ao choro das crianças e ao mau cheiro. Diante do orador convicto, cujo discurso ríspido e autoritário conclama a plateia ao “dever da memória”, Cohen escreve que, para o sobrevivente que recorda, a memória não tem nada a ver com dever, nem com fraternidade póstuma, já que o sofrimento do passado sempre continua, estridente, no presente. “Que a linguagem tem algo a ver com a perda e o luto, isso eu sabia desde a infância: nos trens do metrô, bastava que, sem aviso, surgisse uma parede ou uma curva dos trilhos para que já fosse preciso falar no passado […]. Diante do microfone, o orador falava no passado, mas como se o passado nunca se conjugasse no presente”, ele pondera, em um dos momentos mais impactantes do livro.

Como muitos sobreviventes, Cohen demorou décadas para escrever suas memórias, após já ter construído um projeto literário, e inicia o livro em 2009, aos 72 anos, quando uma amiga de sua mãe lhe entrega um copinho de ovos cozidos pintado à mão. O copinho havia sido um presente de Maria Cohen para a amiga e, por essa razão (afeto, amizade, recordação?), fora guardado ao longo de 70 anos. Como ele, a filósofa Sarah Kofman (Rua Ordener, rua Labat), a teórica da literatura Ruth Klüger (Paisagens da memória) e o historiador Otto Dov Kulka (Paisagens da metrópole da morte) construíram uma obra antes de, décadas mais tarde, serem capazes de testemunhar, recordar e recriar no presente a experiência da infância durante a Shoah.

Otto e Ruth foram deportados em 1942, ele com nove e ela com onze anos. Já Sarah e Marcel passaram a infância, clandestinamente, na França ocupada. Se Sarah Kofman, pouco tempo depois da publicação de suas memórias, sucumbiu, pondo fim à vida (afinal, face à magnitude do trauma, a linguagem nem sempre pode curar), Marcel conseguiu dar forma ao informe, fazendo ouvir o inaudível e tingindo de cotidianidade, ternura e precisão os últimos momentos de vida de sua família sob um regime de exceção. Diante da vivência traumática, talvez só o jogo poético com os fatos e os fragmentos, como um inventário de perdas e desaparecimentos, seja capaz de dar sustentação ao despedaçamento da experiência. E não nos esqueçamos: Marcel só se salvou porque, numa tarde de verão, saiu para brincar.

Quem escreveu esse texto

Ilana Feldman

Crítica de cinema, é co-organizadora de David Perlov: epifanias do cotidiano (Centro da Cultura Judaica) e Estética da Biopolítica (Ministério da Cultura).

Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.