Literatura,

As imperfeições do passado

Em autoficção, Kucinski relata a angústia de um pai diante da dependência química do filho adotivo

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

É madrugada. O pai aguarda, aflito, o telefone tocar. Espera notícias do filho. Mas nem sempre elas vêm. O filho, primeiro adolescente, depois adulto, tornou-se dependente químico. O pai, cineasta engajado e esclarecido, enquanto vê-se progressivamente perdendo as esperanças, começa a escrever para tentar compreender um presente opaco, a partir da recapitulação do passado. Mas ele sabe que todo passado é imperfeito e inacabado, porque nenhum passado, enquanto tal, realmente passa. 

Jornalista, professor e estreante na literatura aos 74 anos com a primeira edição, em 2011, do aclamado K – relato de uma busca, um marco da literatura brasileira recente, o escritor Bernardo Kucinski dá agora continuidade a seu projeto literário com Pretérito imperfeito. Entre um e outro, publicou também a coletânea Você vai voltar para mim e outros contos (2014) e Os visitantes (2016), oportuna discussão sobre literatura e ética, documento e ficção, a partir da recepção de K. Como se pode notar na visão do conjunto, a obra de Kucinski é a expressão de que um “pretérito perfeito” só poderia ser uma ficção gramatical. 

Com seu estilo sóbrio, preciso e econômico, alinhavado pela construção de múltiplas vozes, Kucinski tem criado uma unidade engenhosa entre criação ficcional, relato de uma experiência e pesquisa documental. K tratava do desaparecimento de Ana Rosa Kucinski, irmã do autor, durante a ditadura civil-militar brasileira, numa trama narrada na terceira pessoa e protagonizada por K, pai de Ana Rosa, ao mesmo tempo que atravessada por falas de agentes da ditadura, colaboradores e militantes. Já em Pretérito imperfeito, a violência de Estado e a ausência da filha que marcam o livro anterior dão lugar a violências mais insidiosas, como o racismo e a dependência química.

No centro do livro está o relato, na primeira pessoa, de um pai desgostoso com os caminhos tortuosos tomados por seu único filho. A paternidade, neste caso, a partir de uma “adoção à brasileira” realizada no final dos anos 1970, sem mediação legal, é aqui novamente posta em questão e construída em torno de um vazio. Mas, se começa amorosa e cheia de esperanças, acaba por se desfazer, se não em destroços, tomada pelo medo e apreensão diante desse filho dependente químico, considerado pelo pai um “clandestino no navio da existência”, “viajante ilegal”, “passageiro sem bilhete” que precisa se esconder até o final da travessia.

“Essa é uma história sem começo nem fim”, escreve o cineasta-narrador, perplexo diante de sua dificuldade em compreender em que momento e por que seu filho adotivo, depois de uma primeira infância marcada por doenças e preconceito racial, lançara-se ainda na adolescência à busca desenfreada por um “paraíso artificial”. Mas os repetidos traumas sofridos pelo menino, quem sabe desde sua vida intrauterina, que o narrador tenta recapitular, não explicam satisfatoriamente a adição, nem resolvem conclusivamente o problema. Como resultado, o pai desesperado dá então início a uma investigação sobre o assunto que possa lhe oferecer algum entendimento. Entre leituras de Piaget, Melanie Klein, Winnicot, Michel Soulé, Pierre Levy, Wilfred Bion e visitas a psicanalistas, ele se pergunta: “O que sabíamos sobre adoção? Nada. Absolutamente nada. Passada quase uma vida, quando o feito não pode ser desfeito, pus-me a estudar. Hoje, sei alguma coisa. Pouca coisa”.

Polifonia de falas

Fazendo da incompreensão o motor de sua busca, o narrador lança-se à rememoração de um passado em fragmentos, assim como à tentativa de decifração de fotografias em álbuns de família. A essa tocante interrogação das imagens soma-se a polifonia de falas de especialistas, psiquiatras, inquéritos policiais, notas de jornais. À mãe também é dada a palavra, marcada por seu amor resignado e infinito. Ao filho cabe, se não o silêncio total de sua figura espectral, ausente da convivência familiar, frases parcas e magras reproduzidas parcimoniosamente pelo pai.

Como acontece em A resistência (2015), romance de Julián Fuks (a quem Kucinski agradece ao final do livro) sobre seu irmão adotivo, a tentativa de construção desse outro, espécie de estrangeiro no seio da família, está sempre na iminência do esboço. “Procurei meu irmão no pouco que escrevi até o momento e não o encontrei em parte alguma”, lamenta consternado o narrador, para depois se perguntar se não estaria com esse livro roubando a vida, a imagem, a voz e até mesmo o silêncio do irmão. 

Em Pretérito imperfeito, tal problematização também comparece ao final, quando o pai se autocensura por ser “um ladrão” que teria roubado a história de vida do filho para fazer dela um livro. Do mesmo modo, em K e Os visitantes, a reflexão ética sobre o que pode ou não a literatura, sobretudo quando construída a partir de experiências biográficas, desempenha papel central. Em K, o narrador é preciso quando vaticina a respeito de seu protagonista: “Seu bloqueio era moral, não era linguístico: estava errado fazer da tragédia de sua filha objeto de criação literária, nada podia estar mais errado. Envaidecer-se por escrever bonito sobre uma coisa tão feia”. 

De fato, B. Kucinski, como assina seus livros de ficção, evita “escrever bonito” . Por isso, diferente de grande parte das autobiografias e dos testemunhos, uma “ética da distância” é abrigada por recursos formais — como a alternância entre a primeira e a terceira pessoas — que permitem a seus narradores se distanciarem do extremamente próximo e se aproximarem do extremamente distante. Nesse entrecruzamento entre o biográfico e o coletivo, o pessoal e o político, Kucinski, mais do que uma literatura autoficcional, faria uma “ficção documental”, marcada tanto pela parcialidade dos “documentos” quanto pela precariedade da compreensão.

Dando início a Pretérito imperfeito por uma dura carta de ruptura e separação endereçada ao filho, o narrador tenta através da escrita fazer o luto de uma vida, ao menos até aquele momento, desperdiçada. Dirigindo-se ao leitor, ele escreve: “Não vou repetir por inteiro o que escrevi. Não é coisa bonita de se dizer, nada de que se orgulhar. Escrevi porque era preciso. Sempre houve o pai que expulsou de casa o filho”. Já ao final, a expectativa de mudança é recolocada, porque quem sabe a transmissão operada pela literatura nos torne capazes de não nos resignarmos diante dos impasses do entendimento. Quem sabe, a literatura mesma, ainda que feita de passados imperfeitos, possa vir juntar o que a vida separa. 

Quem escreveu esse texto

Ilana Feldman

Crítica de cinema, é co-organizadora de David Perlov: epifanias do cotidiano (Centro da Cultura Judaica) e Estética da Biopolítica (Ministério da Cultura).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.