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Jornalismo em profundidade

Reportagem de Patrícia Campos Mello ajuda a decifrar as diversas camadas da longa guerra que devasta a Síria

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

“Cercar, matar de fome e render.” É dessa forma que a estratégia de guerra adotada pelo presidente sírio Bashar al-Assad é descrita. Ela resume a situação de várias cidades e povoados atacados pelo regime. A conquista de territórios por todo o país e a retomada de áreas controladas por rebeldes envolve a destruição de hospitais, mesquitas, escolas e mercados, impossibilitando não apenas qualquer tentativa de vida cotidiana, mas também interditando as iniciativas de atenção médica ou ajuda humanitária. 

Assistimos hoje àquilo que teve início em 2011 como uma disputa entre uma minoria apoiadora do governo e uma maioria profundamente insatisfeita com o regime. Desde então, se converteu em uma guerra internacional complexa e dramática. O capítulo mais recente envolve um ataque conjunto dos Estados Unidos, França e Inglaterra à Síria como resposta ao suposto uso de armas químicas pelo governo contra a população civil. 

O bombardeio pode sugerir um novo impasse ou momento particularmente crítico, mas é também mais uma atualização de um quadro que vem se agravando ao longo dos anos e será lembrado como uma das maiores tragédias humanitárias dos tempos modernos. 

O conflito que destruiu o país e já deixou mais de 500 mil mortos e 5 milhões de refugiados produziu imagens como a de Alan, que comoveu o mundo e encarna a catástrofe. A foto do menino de três anos, encontrado morto na praia, revelou a história de sua família, que também pereceu na travessia de bote da Turquia para a Grécia. O pai é o único sobrevivente. 

A guerra na Síria também desafia interpretações no campo da geopolítica. A região mobiliza interesses de diversos países, reúne encontros e conflitos étnicos cujas raízes históricas ganharam atualizações ainda mais intricadas, e as consequências para a região e para o mundo ainda são difíceis de dimensionar. Entre ações como a última investida e discursos de líderes mundiais carregados de ameaças — explícitas ou veladas —, há um jogo de política e de poder cheio de ambiguidades.

Lua de mel em Kobane, da repórter Patrícia Campos Mello, adota um ponto de partida privilegiado e nada óbvio para decifrar esse cenário: uma história de amor. Barzan e Raushan, dois jovens sírios que viviam no exílio — ele na Turquia, ela na Rússia —, se conheceram pela internet, se apaixonaram e resolveram se casar. Ao escolher a perspectiva de dois indivíduos, Campos Mello permite acesso singular às culturas locais, ao contexto de guerra, e tantos outros assuntos. 

Vulnerabilidade e resistência

Entre a voz de seus personagens e a sua própria, a autora cria uma espécie de thriller que faz com que o leitor esteja um pouco lá, sofra com o casal, conheça suas famílias, julgue suas escolhas, torça pelos próximos passos e, em muitos momentos, se implique no conflito. Nesse sentido, é um grande exercício de alteridade em relação à cultura síria e a uma condição radical de vulnerabilidade, mas também de extrema resistência e resiliência.

O livro é igualmente um retrato histórico rigoroso e sofisticado, capaz de iniciar aqueles que conhecem pouco sobre o assunto e, ao mesmo tempo, surpreender entendidos. O glossário e a cronologia que o acompanham são guias para um tema inevitável na compreensão do mundo hoje.

Kobane, na fronteira com a Turquia, se tornou um símbolo da região na luta contra o Estado Islâmico

Barzan, curdo, é o “fixer” que recebe a jornalista e a conduz ao longo da história. O “fixer”, segundo Patrícia, é a “figura mais importante de qualquer cobertura jornalística internacional. É uma pessoa local, que atua como tradutor, às vezes motorista, mas principalmente termômetro cultural”. Jornalista formado em ciência política, ele vem de uma família engajada em protestos de oposição ao regime. Sua história é também a da política no país, de como a sociedade civil local se mobilizou e das respostas violentas do governo.

Raushan estudava direito em Aleppo e diante de ameaças de ordem religiosa mudou para Rybinsk, cidade a trezentos quilômetros de Moscou, para viver com a avó russa.

Casados, decidem ir para Kobane, na fronteira da Síria com a Turquia. De origem curda, Kobane se tornou um símbolo da região na luta contra o Estado Islâmico, e o casal tinha a expectativa de encontrar lá a família de Barzan e construir uma vida nova. Mas a cidade estava abandonada e dominada novamente pelo EI.

Kobane nos ajuda a entender profundamente as muitas camadas da guerra e também a entender um pouco o mundo. O que está em jogo para os países interessados na região, os valores de cada cultura, de que maneira a comunidade global vem recebendo e tratando os refugiados, a nossa tolerância com a violência a depender da situação, e até mesmo a elasticidade com a qual conceitos como ditadura e democracia podem ser usados. Trata-se de um relato que cria conexões em múltiplos planos. 

Nesse sentido, o livro evoca a imagem de uma etnografia ao acessar uma cultura pelos olhos de seus sujeitos, recompondo um universo de referências a partir de muito trabalho de campo. Mas se por um lado o texto dialoga com outras disciplinas como a história ou a antropologia, por outro é uma narrativa que reafirma de forma poderosa a relevância de um tipo de trabalho de investigação e reportagem cada vez mais escasso, que demanda investimentos financeiros, deslocamento físico, coragem e compromisso. Em outras palavras, o livro reafirma o valor do jornalismo.

Patrícia tem ampla experiência na cobertura de conflitos internacionais. Esteve no Iraque, na Líbia, no Quênia e no Líbano e relata sem exotizar, com sensibilidade, às vezes ao lado do seu sujeito, às vezes com o distanciamento necessário para produzir uma análise profunda. 

Lua de mel em Kobane é um registro rico e preciso do nosso tempo, que também nos lembra que o interesse pelo outro, mesmo que distante física e culturalmente, pode inspirar reflexões sobre aquilo que está próximo e é familiar. 

Quem escreveu esse texto

Paula Miraglia

Antropóloga, é fundadora do jornal Nexo e diretora-geral da revista Gama.

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.