Ciências Sociais, Jornalismo,

Três livros sobre o PCC

Lastreada em pesquisas antropológicas e sociológicas, fornada de livros sobre PCC tenta traçar contornos de um poder consolidado

01set2018 | Edição #15 set.2018

“A maior revolta prisional da história do Brasil.” Assim ficou conhecida a Megarrebelião de 18 de fevereiro de 2001, quando 29 unidades prisionais, em dezenove cidades paulistas, passaram para o controle dos detentos. Ficou claro que, ao invés do que se acreditava, as facções criminosas estavam, sim, presentes no estado de São Paulo e tinham grande poder de articulação dentro e fora dos presídios. Aquela era a primeira aparição pública do Primeiro Comando da Capital e tinha como objetivo responder à decisão do governo estadual de transferir e isolar seus líderes.

Cinco anos depois, entre 12 e 15 de maio de 2006, São Paulo viveu dias de pânico provocado por ataques do PCC, mais uma vez motivados pela tentativa de isolamento das lideranças. A sequência de eventos se tornou um marco na escalada da violência urbana. Mais de oitenta unidades prisionais paulistas viveram rebeliões simultâneas. Fora delas, forças de segurança sofriam ataques de proporções inéditas. Ônibus foram depredados e queimados em várias áreas da cidade. 

Os ataques resultaram na morte de policiais militares e civis, guardas municipais e agentes penitenciários, detentos e civis. Provocaram, ainda, uma violenta ofensiva por parte da PM, nas periferias, para localizar integrantes da facção e envolvidos com os ataques. Essas regiões se converteram em campos de perseguição e batalha, submetendo a população local.

Uma semana depois, as represálias somavam 109 mortes, de acordo com a imprensa. As vítimas foram classificadas pela polícia como “suspeitos”, mas até hoje não há laudos conclusivos a respeito. Não se sabe se algum dos mortos pela polícia tinha vínculos com a facção criminosa, se as vítimas efetivamente reagiram à abordagem policial ou se houve confronto.

Nos anos seguintes, as ações do PCC prosseguiram e extrapolaram as fronteiras paulistas. “A maior e mais mortal sequência de assassinatos em massa da história do sistema carcerário do Brasil e do mundo” — assim foi descrita a rebelião de outubro de 2016, na penitenciária de Monte Cristo, em Roraima. A rebelião produziu imagens que sintetizam o terror nos presídios superlotados. Fotos de detentos decapitados circularam por WhatsApp. Desta vez, no entanto, a explicação era outra: uma disputa entre grupos rivais.

As rebeliões são marcos públicos na trajetória do PCC, que desde a sua fundação, há cerca de 25 anos, vem crescendo, diversificando negócios, tornando-se mais complexo e poderoso. A organização conta hoje com quase 30 mil membros em todo o Brasil, dentro e fora dos presídios. Dados do Ministério Público apontam que 2 milhões de homens, mulheres e adolescentes sejam ligados de diferentes formas à organização. Seus negócios estão em ao menos quatro continentes. 

A organização conta hoje com quase 30 mil membros em todo o Brasil, dentro e fora dos presídios

O lançamento concomitante de três livros sobre a facção é, por si só, um sinal dessa importância. A guerra, do jornalista Bruno Paes Manso e da socióloga Camila Nunes Dias, Irmãos, do antropólogo Gabriel Feltran, e Proibido roubar na quebrada, da antropóloga Karina Biondi, são fruto de mais de uma década de pesquisas etnográficas dedicadas a entender um fenômeno que desafia as leis, a ação do Estado, as políticas de segurança e qualquer tentativa apressada ou superficial de interpretação. 

Determinar a natureza e o funcionamento do grupo são preocupações centrais nos três livros. Paes Manso e Nunes Dias reconhecem, por exemplo, que diferentes perspectivas podem retratar diferentes organizações. A depender de quem observe, o PCC pode lembrar uma empresa, uma igreja, uma irmandade. Feltran também vê essa complexidade e aponta a dificuldade que os agentes estatais têm em lidar com o modelo não convencional da organização. Para ele a melhor metáfora para descrevê-la é a de uma maçonaria do crime. Provocativa, Biondi afirma que a interpretação que o senso comum e a mídia fazem do PCC só ajudam no seu modus operandi.

Há certo consenso, entre os autores, quanto à expansão do grupo, entendida como efeito colateral das políticas de segurança pública. Vivemos, há mais de uma década, um agravamento da situação (mais de 60 mil assassinatos anuais, com baixíssimo índice de esclarecimento), e a violência e a segurança pública se converteram em temas que organizam a sociedade. 

Encarceramento

A única resposta foi o encarceramento, adotado como principal estratégia da política de segurança. Com mais de 720 mil pessoas presas, o país tem a terceira maior população carcerária do mundo. Como aprendemos nos diferentes relatos nos livros, não se trata apenas de ineficiência, mas de um Estado ativamente implicado numa dinâmica que alimenta o esquema montado pelo crime. O PCC é produto (mas hoje também se aproveita) de um contexto que combina áreas urbanas caracterizadas pela extrema vulnerabilidade com uma política que tem como carro-chefe a repressão.

As pesquisas deixam claro como o encarceramento é o mecanismo de recrutamento de jovens pobres e desamparados, que não necessariamente fariam carreira no crime, mas passam, de modo quase automático, a integrar a organização no momento em que são admitidos no sistema prisional. Essa é uma das principais marcas e estratégias do PCC. Nas palavras de Feltran, “instrumentalizar a ação estatal repressiva a seu favor”.

Categorias nativas como “salve” (bilhetes com ordens, divulgados por WhatsApp), “batismos” (ritual que marca a entrada na facção), “ideias”, “debates”, dão acesso a uma ética de conduta específica, que organiza as ações cria padrões de comportamento dentro e fora dos presídios. 

Ao lado de um léxico próprio, esses dispositivos permitem que sua lógica de funcionamento seja compartilhada, entendida e aceita como regra. É a capilaridade dessa lógica que faz com que a hierarquia tradicional não seja a chave de interpretação para o PCC. E é aí que reside seu poder.

Hoje, mais de 40% da população carcerária no Brasil é de presos provisórios. Ou seja, sem condenação, não sabemos se são culpados ou inocentes. O marido de Karina Biondi ficou por seis anos nessa condição até ser inocentado. Foi assim que ela começou a fazer pesquisa sobre o assunto — este é seu segundo livro. Em 2010, lançou Junto e misturado: uma etnografia do PCC, que acaba de ganhar nova edição, sobre o funcionamento da organização nos presídios paulistas. 

No novo livro, ela olha para o PCC sobretudo fora das cadeias, em bairros periféricos — a “quebrada” do título, onde é “proibido roubar”. E, a partir das dinâmicas do cotidiano, das relações entre criminosos e comunidade, ora explícitas, ora não ditas, descreve com sutileza e sofisticação como as “ideias” e os “salves” vão dando ordem e significado a determinadas periferias. Assim, apresenta ao leitor uma organização difícil de classificar, sem hierarquia rígida, capaz de se adaptar e se reinventar como modo de sobrevivência. 

As trajetórias individuais narradas por Feltran mostram o mecanismo de recrutamento, a evolução na carreira, as disputas por mercados e posições, os “debates” e as punições. A partir de um longo percurso de pesquisa etnográfica, vai nos desenhando uma organização que se pauta por princípios de conduta — “…agir com humildade e recusar-se a ser mais do que qualquer um dos seus pares é simplesmente o certo, o único caminho a seguir…”. Esses valores orientam as decisões políticas e administrativas do PCC, mas segundo o autor, também a relação entre todos os “irmãos”. Daí a imagem de maçonaria. Feltran faz ainda uma articulação sensível entre uma realidade que num primeiro momento parece individual, mas na verdade trata de mudanças nos arranjos sociais e das transformações das periferias do Brasil. Nesse sentido, o livro é sobre o PCC, mas é também sobre o Brasil das últimas duas décadas. 

Entre essas mudanças, a gestão da sociabilidade criada pelo PCC em territórios onde o Estado não se faz presente ou não é capaz de administrar talvez seja a mais relevante. A redução drástica dos homicídios nos últimos vinte anos em São Paulo, por exemplo, é creditada pelos autores dos três livros ao controle exercido pelo PCC nesses territórios, criando regras, a partir da lógica da organização, que determinam quem está autorizado a matar e quem deve morrer.

Por muito tempo, essa foi uma versão completamente refutada pelo Estado, que explicava a redução dos homicídios pela qualidade das políticas de segurança. Hoje, essa é uma interpretação compartilhada por acadêmicos, formuladores de políticas públicas e pela própria polícia. “A força do PCC não decorre apenas da capacidade de governar o crime”, apontam Paes Manso e Nunes Dias, “mas também do apelo de sua proposta: um mundo do crime pacificado, capaz de melhorar a vida de seus integrantes, de seus familiares e moradores dos bairros onde atuam”. Os dois autores apostam num retrato multifacetado e dinâmico da organização, que tem a amplitude de seu alcance descrito de forma contundente. 

O livro identifica como o PCC, hoje, tem interfaces com o legal e ilegal e foi capaz de expandir sua presença e atuação. O Estado, por exemplo, segundo os autores, não apenas passa a reconhecer sua existência, mas planeja suas intervenções dialogando formal ou informalmente com a organização. As articulações e, posteriormente, a “guerra” com o Comando Vermelho falam dos mercados em disputa, mas também de estratégias de consolidação de poder. 

O leitor acompanha fugas espetaculares, confrontos sangrentos, vinganças e operações financeiras

Nos três livros, o leitor acompanha fugas espetaculares, confrontos sangrentos, vinganças e grandes operações financeiras. Um pano de fundo que poderia estar num romance policial ou numa série de TV, cujo interesse só faz crescer à medida que a narrativa avança. Mas está aí a armadilha. Em momentos dramáticos — quando, por exemplo, imagens de presos decapitados tornam-se correntes, ou quando a ideia de “guerra” passa a ser a forma de descrever não apenas as disputas no interior dos presídios, mas o cotidiano de comunidades inteiras que vivem sob o confronto entre o tráfico de drogas e as intervenções policiais —, somos lembrados de que estamos falando do cotidiano real do país, a partir de uma máquina que movimenta dinheiro, empregos, mercados legais e ilegais, agentes policiais e criminosos e muita, muita violência.

O Brasil é um país que vive com medo, mas é incapaz de se sensibilizar com os seus mais de 60 mil assassinatos. O Estado gasta uma fortuna com a política de encarceramento em massa, mas não consegue reverter quadros de vulnerabilidade extrema nem garantir direitos ou serviços básicos. As histórias retratadas em cada um dos livros parecem encarnar essas contradições, são um retrato das fronteiras disfuncionais entre o legal e o ilegal. São versões atualizadas das nossas desigualdades estruturais. 
 

Quem escreveu esse texto

Paula Miraglia

Antropóloga, é fundadora e diretora geral do jornal Nexo.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.