História, Literatura,

Encurralado no país do futuro

Lançadas em livro, conferência pacifista e agenda telefônica de Stefan Zweig evocam as dificuldades que enfrentou em seus últimos dias, passados no Brasil

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

A publicação de A unidade espiritual do mundo, palestra de Stefan Zweig no Rio de Janeiro, de 1936, e da curiosa versão em fac-símile de sua última agenda de telefones, convida à reconsideração do significado das três viagens do escritor ao Brasil. 

Em 1936, Zweig chegou ao Rio, vindo da Inglaterra, onde morava, de passagem para um congresso do Pen Clube, em Buenos Aires. A visita foi um sucesso, inclusive como evento social. Famoso, o escritor fez a conferência em francês, na Escola de Música, cercado de figuras ilustres.

A palestra é uma defesa do pacifismo, uma causa que Zweig [1881-1942] assumira já no período da Primeira Grande Guerra. Seu pacifismo tinha um viés cultural, era antinacionalista e europeísta. Durante o conflito mundial, Zweig jamais aceitou que os amigos Romain Rolland e Émile Verhaeren, francês e belga, ambos escritores, fossem vistos como pertencentes ao campo inimigo. Na apresentação da conferência, Celso Lafer lembra a classificação, pelo cientista político italiano Norberto Bobbio, de três formas de pacifismo — o instrumental, que persegue uma política de desarmamento, o institucional, que objetiva a criação de órgãos reguladores para garantir a paz, e o mais difícil de ser exercido, o finalista, de adesão pessoal, que pretende convencer do valor da paz. Este era o caso de Zweig.

Na visita ao Rio, com o continente europeu partido, o europeísmo de Zweig não fazia mais sentido. Por este motivo, o escritor desviou sua atenção da Europa para a América Latina e tomou como tema de sua palestra a unidade espiritual do mundo. Pela primeira vez, ele manifestou a crença de que caberia aos latino-americanos, voltados para o futuro, o papel de condução da unificação espiritual. Recorreu em sua argumentação ao episódio bíblico da Torre de Babel, que remeteria ao ideal de comunicação universal, e ao espírito da latinidade, a seu ver, uma força integradora. 

Zweig voltou à América do Sul em 1940. Passou pela Argentina, pelo Uruguai e pelo Brasil. Na Argentina, repetiu a palestra carioca, com alterações em virtude da situação de guerra. Israel Beloch, responsável pela edição de A unidade espiritual do mundo, cotejou as conferências do Brasil e da Argentina e mostrou que o diagnóstico da situação de 40 era muito mais sombrio do que o de 36, mas que o ideal pacifista fora preservado. Zweig afirmou em Buenos Aires: “Conservemos a convicção inquebrantável de que nosso mundo passará de catástrofe em catástrofe enquanto se negar a admitir a ideia de uma unidade espiritual”.

A viagem de 1940 serviu para Zweig obter subsídios para escrever 'Brasil, país do futuro'

Defendeu-se também da acusação de irrealismo da sua posição: “Por acaso a razão deve render-se à loucura? É uma ideia menos verdadeira porque no momento atual é irrealizável? Pelo contrário, o dever superior do intelectual é o de permanecer fiel às suas convicções, ainda que a realidade as desminta no momento. […] Admitamos, porém, que inclusive tenhamos nos equivocado e trabalhado em favor de uma quimera; pelo menos teremos vivido para a ilusão mais nobre que anima a face da Terra”.

A viagem de 1940 serviu para Zweig obter subsídios para escrever Brasil, país do futuro, livro que pretende demonstrar, com base em um retrato do país, que poderíamos servir de modelo para o mundo. O Brasil, por causa de sua história e geografia, teria condições de abrigar uma civilização sem preconceitos, herdeira dos melhores ideais que a Europa tinha criado e que tinham sido traídos. 

A terceira viagem de Zweig foi decidida rapidamente em Nova York, por insistência de Lotte, sua segunda mulher. Essa viagem é muito diferente das duas anteriores. Primeiro, porque tudo indica que Zweig buscava um lugar para se estabelecer. Também porque foi a última viagem. O último período no Brasil durou pouco — de fins de agosto de 1941 até o suicídio, em 22 de fevereiro de 1942. 

A decisão de partir se deu no momento em que complicava o cenário da guerra na Europa. Os alemães tinham ocupado uma parte considerável da Europa Ocidental e iniciaram a invasão da União Soviética. Os Estados Unidos ainda não tinham entrado no conflito, mas tudo indicava que logo entrariam. 

Contatos

A chegada ao Rio, em  27 de agosto de 1941, não foi um acontecimento festivo. Zweig aportou logo depois da repercussão do lançamento de Brasil, país do futuro. A reação ao livro foi bastante negativa. A caderneta de telefones agora disponível mostra que os contatos no país eram, na maior parte, em meios oficiais, como os diplomatas que o receberam nas viagens e que foram mediadores de seu pedido de asilo. Poucos escritores e artistas estão registrados, e esses, em geral, não são expressivos, com exceção de Afonso Arinos, com quem teve alguma colaboração. Os intelectuais, na época, eram quase todos da oposição, suspeitavam da acolhida dada ao escritor pelo governo federal. Chegou a ser dito que o livro seria encomenda do departamento de propaganda, o mal-afamado DIP. Falhou a cordialidade dos brasileiros que o escritor tanto festejara. 

Também não foi bem-sucedido no trabalho nesses meses. Com muito custo, tentava avançar o livro sobre Balzac. Escreveu um conto, “Uma partida de xadrez”, que narra um episódio passado em uma viagem de navio para o Rio, cujo personagem é um ex-prisioneiro dos nazistas que joga uma partida com um campeão descrito ora como um autômato sem sentimentos, ora como um animal feroz. Tentou escrever sobre Montaigne, de quem se sentia próximo, mas não concluiu o trabalho.

Nesse final de 1941 e início de 1942, os acontecimentos políticos e militares se precipitaram. Os Estados Unidos entraram na guerra em dezembro. Os nazistas organizavam os primeiros deslocamentos dos judeus alemães e austríacos para a Polônia, para serem exterminados. Em janeiro de 1942, aconteceu no Rio a reunião dos chanceleres dos países americanos. Com exceção do Chile e da Argentina, todos os demais países romperam relações com o Eixo. Tudo indicava que também o
Brasil entraria na guerra. 

A reação ao livro foi bem negativa. Chegou a ser dito que a obra era uma encomenda do governo 

O conflito se aproximava. Não é difícil imaginar a angústia de Zweig ao considerar a possibilidade de seu passaporte ser carimbado no Brasil da mesma forma como fora na Inglaterra — alien enemy, inimigo estrangeiro. Ou, pior ainda, antecipando que os Aliados, inclusive o Brasil, perdessem. 

Em outubro de 1941, foi publicada no Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, a tradução, por Manuel Bandeira, do último poema de Zweig:

Suave as horas bailam sobre
O cabelo branco e raro.
A áurea taça a borra cobre:
Sorvida, eis o fundo, claro!

Pressentimento da morte
Não turba, é alívio profundo.
O gozo mais puro e forte
Da contemplação do mundo

Só o tem quem nada cobice,
Nem lamente o que não teve,
Quem já o partir na velhice
Sinta — um partir mais de leve.

O olhar despede mais chama
No instante da despedida.
E é na renúncia que se ama
Mais intensamente a vida.

Quem escreveu esse texto

Eduardo Jardim

Professor de filosofia, é autor de A doença e o tempo: aids, uma história de todos nós (Bazar do Tempo) e de Eu sou trezentos: Mário de Andrade, vida e obra (Edições de Janeiro).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.