Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

É o bicho, é o bicho

‘Vale o escrito’ expõe as dinâmicas da informalidade como regra e da vagabundagem como crime no Brasil, mas também acionou a memória afetuosa do meu tio Zeca

01fev2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #78

“Tio Zeca, onde você vai? Quero ir!”. “O tio vai comprar jornal e fazer uma fezinha. Fica aí que te trago um doce.” Assim começavam os domingos em minha infância. Não sabia muito bem o que meu tio avô Zeca queria dizer com isso, mas, na minha cabeça fantasiosa, imaginava que “fezinha” fosse a romaria que meu tio fazia todas as manhãs de domingo pelo bairro: encontro com os amigos no boteco para colocar o papo em dia, padaria para comprar o pão do café da manhã e banca para garantir o Notícias Populares, antigo jornal paulistano notório pelas páginas policiais que ele e minha avó tanto gostavam de ler.

O que me motivou a assistir à série documental Vale o escrito: a guerra do jogo do bicho foi meu interesse por true crime, documentários e séries sobre criminologia e, mais precisamente, sobre as dinâmicas de um jogo que eu nunca entendi bem. Avestruz, burro, cachorro, galo e outros animais compõem o panteão de um dos jogos mais populares do país, ainda que seja considerado uma contravenção.

Por volta da década de 30, bichos e alegorias criaram laços até hoje indissociáveis

A origem do jogo do bicho remete ao período imperial. Segundo a historiografia, foi criado em 1882, na cidade do Rio de Janeiro, pelo barão João Batista Viana Drummond. A ideia inicial era atrair público para o zoológico. Com a crise no período, ao passo que os comerciantes passaram a disponibilizar brindes para atrair consumidores, o barão estipulou prêmio em dinheiro para quem portasse o bilhete de entrada com a figura do animal escolhido no dia, dentre 25 do zoo. Mas os animais fugiram das gaiolas e o jogo se popularizou. Cinco anos depois da criação, bancas de apostas preenchiam os botecos e as esquinas da cidade. Só depois da morte do barão o jogo foi considerado uma contravenção, enquadrada na lei 3.688/1941. Mas aí já era difícil contornar.

O jogo do bicho se transformou numa instituição, para alguns até meio sagrada. Murilo Mendes apresentou a contradição: “O homem é o único animal que joga no bicho”. Machado de Assis, numa crônica de 1895, explorou o tema: “Os bichos de Vila Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro depressa, e sem trabalho, tanto como fazem perdê-lo, igualmente depressa e sem trabalho”. Note que a grande problemática em torno do jogo trazida à tona pelo velho bruxo é a ideia de fazer dinheiro depressa e sem trabalho.

Sociedade de classes

No processo de industrialização e inserção do Brasil no capitalismo moderno, no qual o país se esforçava para se transformar numa sociedade de classes e não mais de proprietários e escravizados, a ideologia sobre o trabalho precisava ser transformada. Por séculos, o trabalho foi algo ligado à brutalidade e à punição, conectado à inferioridade. Ao visar a modernização, era preciso criar outra narrativa sobre o trabalho. Se antes era não digno, relegado ao “destino dos escravizados”; agora, no “Brasil do futuro”, era preciso transformar o trabalho em algo engrandecedor das pessoas. Não era bem essa a promessa da bicharada.

Por volta da década de 30, bichos e alegorias criaram laços até hoje indissociáveis. Como num casamento religiosíssimo e para a vida toda, jogo do bicho e Carnaval se entrelaçaram. A cerimônia teve início quando Natalino José do Nascimento, o Natal da Portela, perdeu seu grande amigo, Paulo da Portela, e resolveu homenagear o confrade com forte investimento na escola. O Conjunto Oswaldo Cruz passou a se chamar Portela e, com a figura de um “bicheiro patrono”, se tornou uma das principais escolas de samba vencedora de Carnavais. Laços selados, muitos outros banqueiros se somaram ao ziriguidum, dentre eles os principais protagonistas de Vale o escrito.

A série não só apresenta as complexidades que tomaram o caminho do jogo do bicho e suas personagens, mas mostra como é preciso entender o seu surgimento, o do carnaval e do seu mercado para compreendermos as dinâmicas de informalidade e suas relações com a violência e a ilegalidade, entranhadas no entretenimento da população. Expõe ainda como essas dinâmicas são componentes indissociáveis para entender o Rio deJaneiro — e, indo além, as dinâmicas patrimonialistas, conchaveiras, da informalidade como regra e da vagabundagem como crime no Brasil.

Em Vale o escrito, a ideia saudosista de um jogo do bicho que não fazia mal a ninguém é descortinada. Um negócio altamente lucrativo e cada vez mais violento, conectado à lavagem de dinheiro e a vários meandros do crime organizado. Mas, nesta coluna, ativo a memória afetuosa de meu tio Zeca. Se ainda não entendo muito bem do jogo, sei que isso se deve ao fato de ele ter partido muito cedo. Nunca mais tive contato com a fezinha, nem com os doces todo domingo pela manhã. Deixo as análises complexas aos estudiosos do tema.

Ao avançar cada episódio, percebi um jeito vistoso, malandro e gracioso que me reconectava ao meu tio. Apenas apostador, trabalhou a vida toda como funcionário público, o que garantiu o recurso para um terreninho na periferia de São Paulo, onde ele e minha tia Custódia acolheram minha avó, minhas tias, minha mãe adolescente e eu. Uma memória que doeu e me fez perceber que eu a havia escondido para lidar com a perda de uma das mais importantes figuras para mim.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.