Literatura Negra,

O céu de Lilia Guerra

Em romance recém-lançado, autora traz profusão de personagens da periferia paulistana que se confundem com sua trajetória

01nov2023 | Edição #75

Passava de meio-dia quando Lilia Guerra abriu o portão de ferro coberto em toda sua extensão pelo desenho de uma menina de cabelos crespos, enfeitados por um laço vermelho, deitada de bruços com um livro entre as mãos. Na lombada, lê-se Perifobia, mesmo título da coleção de contos que a escritora lançou em 2018, pela editora Patuá. O sobrado onde ela vive com o marido e a filha caçula — a mais velha mora com a companheira — não tem campainha de propósito: como há uma creche na mesma calçada, as pessoas confundem os endereços devido ao grafite. Para manter a paz da cadelinha Tereza, Lilia abriu mão da sineta.

A pequena late, embaraçando-se nas pernas da tutora no caminho cheio de vasos de plantas que leva da garagem à sala. Lá dentro, a atenção da cachorrinha se volta à gata Madalena. As duas passam o tempo inteiro emboladas, provocando-se. A trilha sonora é samba, preferência que Lilia carrega também na camiseta estampada com as imagens de Cartola e Nelson Cavaquinho.

Na cozinha, a mesa posta, a comida perfumada reaquecendo nas panelas sobre o fogão, denunciam o atraso. Meia hora. Cálculo malfeito para chegar ao Fim-do-Mundo, que é como Sá Narinha, protagonista do novo livro de Lilia, O céu para os bastardos, refere-se à Cidade Tiradentes, em São Paulo. Do centro, leva-se uma hora e meia até o bairro no extremo leste da cidade, num trajeto conhecido. Morei os primeiros vinte e cinco anos de vida numa vizinhança no meio do caminho. Nas raras vezes em que uma boa alma oferecia carona, o percurso era descrito como “pegue a Radial Leste e siga toda a vida: quando você achar que está chegando, siga mais um pouco”. 

Pois para alcançar o cenário do romance recém-lançado pela editora Todavia, é preciso ir adiante. A previsão é de que, até 2025, seja inaugurada a estação Jacu-Pêssego, que deve encurtar a distância. Por enquanto, a obra em torno dos gigantes espantalhos de concreto que irão sustentar os monotrilhos enfeia e provoca trânsito na movimentada avenida Ragueb Chohfi.

A via cruza diversos bairros rumo ao conjunto habitacional de Lilia. De um lado e do outro, sucedem-se escolas, pet shops, lojas de móveis, atacadões, oficinas mecânicas, igrejas e lava-rápidos. Na avenida em que diariamente a escritora pega o ônibus rumo ao serviço público de saúde em Guaianases, lugar em que atua como técnica de enfermagem, assim como nas ruas até sua casa, há açougues, mercadinhos, comércios de roupa e quinquilharias, salões de beleza e diversas “adegas”, uma ao lado da outra — bares que, segundo Lilia, lotam em festas noturnas a céu aberto.

Com opções tão restritas, ambições profissionais são realizadas por quem estiver disposto a percorrer a uma hora e meia de deslocamento até o centro. Por isso, quando Lilia se mudou com a mãe e a avó em 1986, aos dez anos, a Cidade Tiradentes era chamada de “bairro-dormitório”. As pessoas chegavam para dormir — poucas horas — e voltar ao trabalho. Nessa época, Lilia mal via a mãe, empregada doméstica dos bacanas de outras vizinhanças.

Lilia Guerra escreve sobre as pessoas que a desigualdade tenta empurrar para as margens

Quem cuidava da menina era a avó que, segundo a autora, desanimou quando as três trocaram a Vila Mariana pela zona leste. Foi nesse distrito de classe média na região sul de São Paulo que a mãe de Lilia conheceu o pai da escritora, um homem mais velho, que sumiu quando ela não tinha nem três anos.

Tudo que Lilia sabe dele está na pasta de plástico que coloca sobre a mesa. Dentro dela há cartas, cartões-postais, recortes de jornal, um livro de poemas traduzido pelo pai, um retrato dele e outro de Lilia, aos dois anos. Segundo a mãe da autora, foi o pai quem a levou à sessão de fotos. Ela não guarda nenhuma lembrança da ocasião. Num pedaço de papel, uma lista de nomes encabeçada por Lilia. “Ele não assumiu, mas quis escolher o nome”, diz, irônica.

As recordações desse romance foram o motivo de Lilia escrever seu primeiro livro, Amor avenida, registro do relato feito pela mãe. Lançada de forma independente em 2014, a publicação transformou seu gosto pela leitura em necessidade de escrita. Depois dela, vieram Perifobia, finalista do Prêmio Rio de Literatura em 2019, Rua do Larguinho e outros descaminhos (2021), Crônicas para colorir a cidade e Novelas que escrevi para o rádio vols. 1, 2 e 3 (2022), todos pela Patuá, além de contos publicados em revistas e sites.

Nas páginas, uma profusão de personagens se mistura. São cabeleireiras, empregadas domésticas, comerciantes, donas de casa, empreendedoras, estudantes, cozinheiras, enfermeiras, professoras, patroas, mulheres casadas, mães solo, viúvas. Os nomes se repetem, dando um sabor especial às histórias, que se desdobram de um volume a outro, como a da heroína de O céu para os bastardos, Sá Narinha, que aparece pela primeira vez em Rua do Larguinho. A inspiração vem de um olhar gentil sobre seu cotidiano e a própria trajetória. Lilia escreve sobre as pessoas que a desigualdade tenta empurrar para viver às margens.


O céu para os bastardos, oitavo livro de Lilia Guerra

Ela conversou com a Quatro Cinco Um sobre sua história de vida, seus livros e sua paixão pela escrita. E levanta a questão: vai mesmo entrar no circuito literário?

Você escreveu seu primeiro livro, Amor avenida, para contar a história de amor de sua mãe.
Sim. Quando eu tinha uns quinze, dezesseis anos, minha mãe me deu uma pasta em que estava tudo o que ela guardou do meu pai e falou: “Olha, o que aconteceu está aí”. Tinha até um livro de poemas que ele traduziu, que passei a levar na mochila para a escola.

Até então, você não sabia nada sobre seu pai?
Nada. Esse foi meu primeiro contato. Minha mãe não falava dele porque não queria que sua irmã mais velha soubesse que era o ex-patrão dela. Depois desse episódio, minha mãe passou a dar detalhes sobre minhas irmãs por parte de pai. Numa ocasião, ela apareceu com uma revista que tinha uma reportagem com uma foto de uma das minhas irmãs. Ela era ghostwriter e jornalista. Trabalhava na revista Boa Forma. Consegui o e-mail e passei a mandar mensagens. Acho que ela ficou curiosa, e a gente começou a conversar. Até o dia em que ela entendeu quem eu era e disse: “Olha, não quero contato, não me interessa saber nada sobre você”.

Mas ela me deu informações: contou que meu pai morreu em 1986, quando eu tinha dez anos, e me cedeu uma foto. Minha mãe era viciada em ler obituários, procurando notícias dele. A essa altura, minha tia, para quem minha mãe tinha medo de revelar a identidade do meu pai, havia morrido, e ela passou a desejar que eu fizesse um teste de DNA. Mas entendi que, com essa irmã, isso não ia acontecer.

Por quê?
Depois de insistir nos e-mails, tivemos um encontro, um almoço ao qual levei a pasta com as cartas e os documentos. Depois de uma hora, ela disse: “Terminamos, né?”. Anos depois, fiz uma oficina de criação literária numa biblioteca em Guaianases, e ela era uma das professoras. Num primeiro momento, não me reconheceu, mas, durante as conversas, quando falei meu nome, percebi que ficou me observando.

Nessa aula, eu disse que queria escrever um livro, e ela falou: “Isso não é para qualquer pessoa. Tenho mais de sessenta anos e só agora estou conseguindo alguma visibilidade…”. Fiquei pensando naquilo e decidi escrever Amor avenida. Minha mãe queria que as pessoas soubessem o que tinha acontecido. Na visão dela, escrevo porque meu pai também escrevia. Minha mãe diz que está no sangue.

E como foi o processo de escrever Amor avenida?
Foi pesado, porque havia coisas que eu não queria saber. Quando minha mãe resolveu contar, falou tudo, sem filtro. Doía, porque era difícil para ela também. Mas fiz como ela queria. Escrevi tudo.

Qual é sua história?
Minha mãe, minha tia e minha avó moravam na Vila Mariana, perto da [avenida] Lins de Vasconcelos, onde prestavam serviços como babá, empregada doméstica e tal. Minha tia trabalhou na casa do meu pai como babá das netas dele e, às vezes, minha mãe passava por lá, e ele a via de longe. Minha tia não estava mais nessa casa quando minha mãe foi demitida de uma fábrica de cosméticos e, na sequência, por acaso, reencontrou meu pai numa feira ali do bairro.

Ela contou que estava chateada, pois havia perdido o emprego, e ele disse para procurá-lo, porque poderia ajudar. Minha mãe achou que era um convite para ser empregada doméstica e, no dia seguinte, foi bem cedo à casa dele. Quando ela chegou, ele a levou para o escritório, num anexo onde morava com a esposa e a família, e foi assim que começou a história deles. Nessa época, minha mãe tinha treze para catorze anos e meu pai, 74.

Ele mantinha sua mãe escondida?
Sim. Ela passava horas nesse anexo, inclusive sozinha; quando ele saía, então, ela lia muito. Daí meu pai conversou com a minha avó, e eles se acertaram. Conversa de adultos, porque minha mãe era uma criança, né? Ele dava alguma ajuda, porque elas viviam em extrema vulnerabilidade. Estavam em vias de ir para a rua — por isso, apesar de ter ficado revoltada quando soube, não julgo. Mas havia uma exigência: minha mãe não podia ter outros namorados e devia tomar pílula [anticoncepcional]. Depois de um tempo, minha avó adoeceu e deixou de administrar o remédio. Minha mãe tomava como queria.

Quando minha mãe ficou grávida, aos dezesseis anos, ele achava que não era o pai. Mesmo assim, tentou que ela abortasse, mas a médica disse: “Faço aborto em mulheres, não em crianças. Além disso, a gestação está avançada. Não tem mais o que fazer”. Minha mãe passou a gravidez sozinha. Quando nasci, ela o procurou, porque eu era parecida com meu pai, e ele passou a ajudar como podia. Como ele era um senhor de quase oitenta anos, os oito filhos cuidavam das finanças. E ele não queria levantar suspeitas, né? Ficava muito ausente, viajando para cuidar da saúde, e mandava cartas.

Sua mãe estava apaixonada, né?
Sim. É até hoje. Diz que ele era gentil, escrevia poemas para ela. Até um dia em que eu fiquei doente e minha mãe não aguentou e foi até a casa da família, porque precisava de remédios. Quem a atendeu foi a filha mais velha. Essa minha irmã disse para minha mãe ficar tranquila e retornar na semana seguinte, pois ela ia resolver a situação com os irmãos. Quando minha mãe voltou, a casa estava vazia. Eles tinham se mudado. Minha mãe nunca mais viu meu pai. Eu tinha uns três anos.


A escritora paulistana Lilia Guerra [Renato Parada]

Como foi o processo de publicação de Amor avenida?
Quando o livro ficou pronto, em 2014, procurei alguém para me ajudar, até encontrar uma agente literária e uma editora, a Oitava Rima. Paguei sei lá em quantos cheques por umas cento e poucas cópias, porque minha mãe ficava me botando pilha, dizendo que ia morrer sem ver o livro — e minha mãe é jovem, não é cardíaca, diabética nem tem nenhuma doença. Na noite de lançamento, ela estava muito contente. Para mim, não precisava escrever mais nada. Pensei: “Estou de boa, agora, vou seguir minha vida”. Até que li sobre uma oficina literária, a Vitamina Criativa, da professora Nanete Neves, na Casa Mário de Andrade, e decidi me inscrever.

E foi a partir dessa oficina que você passou a escrever sem parar?
Sim, cheguei plena à oficina da Nanete porque, afinal, havia publicado um livro. Nas primeiras conversas, compreendi que tinha feito tudo errado e decidi entender aquele processo, pois gostava cada vez mais de escrever. Depois da Nanete, fiz aulas com o Luiz Bras, descobri o coletivo Palavraria e passei a frequentar a Casa das Rosas para me aproximar desse universo. Foi assim que conheci o Eduardo Lacerda, da Patuá. Mandei uns contos para ele, que decidiu publicar Perifobia, com muitas das histórias criadas na oficina do Luiz Bras.

Você tinha dez anos quando se mudou para a Cidade Tiradentes. Como essa mudança impactou você?
Aqui era superdiferente, né? Na Vila Mariana, a gente morava num quarto e cozinha em condições bem difíceis, mas no entorno era tudo misturado. O senhorio, por exemplo, tinha uma casa maior, na mesma vila. Na esquina, havia a mansão do advogado, a do dentista… Aqui não, era mato. Quando chegamos, estavam todos na mesma situação. Pão só tinha quando passava a Kombi do senhor Rubens — de quem eu falo em Perifobia. Se a Kombi quebrava, ficávamos sem pão. Saí de uma escola pública cheia de regras e vim parar em uma que não tinha nem porta. Nem aula também. Era estranho, mas não ruim, porque eu achava tudo tão livre… Ninguém ligava se eu saía de chinelo.

Mas estudei aqui só por dois anos, até minha mãe me transferir para uma escola na Mooca, onde eu passava muito tempo na biblioteca, porque detestava fazer educação física — e a professora não fazia a menor questão da minha presença. Foi lá que eu li Quarto de despejo e Casa de alvenaria [de Carolina Maria de Jesus]. Mas a minha mãe sempre me incentivou a ler. Mesmo na Vila Mariana, ela me levava à biblioteca, e eu passava horas lá.

E quando foi que você decidiu transformar os personagens daqui em protagonistas de seus livros?
Gosto muito da [norte-americana] Pearl Buck. Li todos os livros dela, mas tem um, Pavilhão de mulheres (BestSeller, 2009), que me impressionou, sobre uma chinesa que no seu quadragésimo aniversário dá de presente ao marido uma concubina e fala: “Ó, tô saindo fora”. Passei a reler esse livro uma vez por ano, sempre focada na Madame Wu, até um dia em que eu estava envenenada, sabe? No ônibus, com calor, cansada do serviço… E aí, nessa minha quinta leitura, caiu a ficha de que Madame Wu não fazia nada porque ela tinha uma serva, Ying, que penteava o cabelo dela, escolhia sua roupa, preparava a comida.

A verdadeira heroína era Ying. Eu sou a Ying. Minha mãe é a Ying. Minha vó era Ying. Até então, pensava que tinha de escrever a história de uma pessoa que, sei lá, tinha feito uma coisa muito louca, mas entendi que deveria falar das Ying ao meu redor. Foi quando comecei a me interessar pela minha vida.

Como assim?
Fui criada em casa de patrão. Minha avó me levava para trabalhar e, assim que a gente chegava ao portão, ela falava: “Quieta, hein! Não respira, não olha pro lado e não faça nada. Se você fizer alguma coisa, vou te matar”. E eu ouvia muita coisa, né? A Jecaline, de “Entre roseiras e jabutis” [conto de Perifobia], criei porque a minha avó inventava apelidos para as patroas, para poder falar delas em casa sem correr o risco de eu reconhecer e comentar as histórias em outro ambiente. Óbvio que eu sabia de quem ela estava falando, né? Mas não era só isso: testemunhei também as injustiças.

Acompanhei minha avó trabalhar até desfalecer, ter reumatismo nas mãos, de tanto ir da friagem para o quente… Quando captei a Ying, pensei: “Agora vou me vingar! Vou contar tudo o que eu via e ouvia”. Tomei gosto [risos].


A jornalista Adriana Ferreira Silva entrevista Lilia Guerra na casa da autora na Cidade Tiradentes, em São Paulo [Renato Parada]

Ainda que você descreva personagens homens, as mulheres são as protagonistas. Quando se interessou pelas experiências delas?
Isso começou com Rua do Larguinho e outros descaminhos. Quando tive um aborto, aos catorze anos, sofri violência obstétrica no hospital [uma das personagens tem a mesma vivência no livro]. A enfermeira me culpava, negava analgésicos. Contei para a médica que estava com muita dor de cabeça, e ela perguntou à enfermeira por que não tinha me dado os remédios se havia deixado a prescrição. Hoje, entendo que a enfermeira fez de propósito para me castigar. Era como se eu fosse uma criminosa e merecesse sofrer. Lembro disso todos os dias. Ora penso no que poderia ter sido e não foi, ora relembro a dor que senti ou quando vejo alguém na mesma situação.

Após a alta, a médica recomendou à minha mãe que eu tivesse um acompanhamento psicológico. Quando chegamos em casa, minha mãe falou: “Sabe qual vai ser o seu psicólogo, né?”. Tipo assim, vai ser o serviço e a vida vai seguir. Fiquei mal, mas não tinha com quem conversar. Para me livrar daquela dor, tentei refazer a situação de outra maneira, com outro bebê. Minha primeira filha nasceu quando eu tinha dezesseis anos. Minha esperança é que alguém leia essa história antes de passar pelo mesmo que passei. 

Uma coisa deliciosa de seus livros é que encontramos os personagens de O céu para os bastardos em Perifobia, por exemplo. É uma ideia ir desdobrando essas relações?
Isso começou porque, quando publicava os contos no Facebook, muitas leitoras e leitores mandavam mensagem dizendo: “Que maravilha, mas cadê a continuação?”. E não tinha, mas as pessoas insistiam. Como estava trabalhando muito nessa época, sem tempo para criar personagens, comecei a cruzar histórias: casei o Thiago com a Isabel, encontrei um pai para ele, juntava fulano com sicrana. Ia fazendo isso sentada no ônibus.

Você escrevia no ônibus?
No ônibus, no trem, na plataforma do trem. No intervalo do trabalho, quando pegava meu notebook, o pessoal me zoava, dizendo: “Vou te pôr no meu livro!” — frase que Carolina Maria de Jesus dizia aos vizinhos. Minhas histórias nascem dessas vivências: tenho uma colega que, na pausa, saía para fumar e guardava o fósforo riscado dentro da caixa. Não bastasse não usar isqueiro, imagine o trabalho danado para achar um palito bom no meio de outros. Decidi escrever sobre isso e nasceu “Rascunho de Amaro” [conto do livro Perifobia]. Dei uma volta imensa só para chegar ao momento em que Amaro guarda os fósforos riscados na caixa.

E tem os personagens que se repetem: a filha da tia Bê, em O céu para os bastardos, tem o mesmo nome da filha de uma senhora que mora lá em Perifobia. Foi proposital, pois se trata de um caso real: Jurema foi assassinada numa tarde de domingo, com o filho no colo, na frente de suas outras crianças. Isso acontece o tempo todo, e não quero que fique esquecido. Ela representa muitas mulheres.

‘Nos outros livros, todo mundo canta, dança, mas nesse não. ‘O céu para os bastardos’ tem um clima meio denso’

Como foi que nasceu seu novo livro, O céu para os bastardos?
O pessoal do projeto Escrevendo o Futuro publicou uma das minhas crônicas, “Conduções”, numa revista. A [escritora] Dalva Maria Soares leu, me chamou no Facebook para perguntar se eu tinha outras histórias, e eu lhe apresentei Perifobia. Dalva é namorada do José Falero, que falou de mim para o editor dele na Todavia, o Leandro [Sarmatz], que por sua vez me escreveu perguntando se eu tinha alguma coisa nova, e eu afirmei ter um esboço. 

Uns três meses depois, Leandro me procurou de novo e disse: “Vamos publicar”. Eu estava toda bagunçada: tinha feito uma inscrição faraônica no ProAC [Programa de Ação Cultural do estado de São Paulo] para fazer um livro de crônicas, reeditar Amor avenida — que eu reescrevi inteiro — e mais três novelas. Então, pedi exoneração de um dos cargos [Lilia trabalhava como técnica de enfermagem em dois serviços de atendimento especializados em dsts] para me dedicar à escrita. 

A heroína do livro, Sá Narinha, aparece também em Rua do Larguinho e outros descaminhos. Por que escolheu contar a história dessa mulher?
Sá Narinha não é uma personagem com quem tenho intimidade. Costumo dizer que eu e ela, “é de poucas ideias”, sabe? Ela é misteriosa… Mas, enfim, minha intenção era tratar de uma mãe cujo filho comete um crime. Não queria dar ênfase a ele, o filho, e sim falar do sentimento dela. Com o tempo, me deparei com uma Sá Narinha que talvez tivesse alguma questão anterior com o filho.

 Ela não tinha um amor maternal. Nem todas as mães têm. Já ouvi muitas dizendo: “Lembro muito de seu pai quando vejo você” e, às vezes, o pai traz péssimas recordações. Nos outros livros, todo mundo canta, dança, mas nesse não. O céu para os bastardos tem um clima meio denso. Fiquei com um pouco de medo, porque achava que não era tanto a minha cara, mas era o que tinha para o momento.

‘Carolina Maria de Jesus também foi uma explosão, e vimos o que aconteceu depois, né?’

Falando em música, ela é presente em suas histórias, inclusive com trechos de letras abrindo os capítulos. Qual sua conexão com o samba?
Samba é literatura. Minha relação com a música começou quando cheguei da maternidade: minha avó colocou Martinho da Vila para tocar alto porque eu precisava me habituar. Adorava manusear os discos da minha avó. Colocava Clara Nunes na vitrola. Meu processo criativo teve início ouvindo Candeia descrever ambientes muito parecidos com os que imagino. Em “Minha Gente do Morro”, Candeia fala das pessoas expulsas do morro para um lugar, segundo ele, “onde Deus não faz morada”. Acho essa fala corajosa, porque todos dizem que Deus está em todos os lugares. Fico pensando: será que Deus faz morada aqui?

Você está lançando O céu para os bastardos em um momento de grande atenção à literatura feita por pessoas que vivem ou vêm da periferia e por mulheres, em especial pretas, que estão frequentando mais festas literárias…
Eu me pergunto se vou entrar mesmo nesse circuito.

Por quê?
Nas orelhas dos livros leio que as pessoas são especialistas, mestres, doutoras… Eu tenho um ensino médio técnico. Minha literatura é essa que você está vendo. Para mulher, já é diferente escrever, porque acumulamos mais funções. Num primeiro momento, as pessoas podem achar interessante, mas, depois, podem pensar que, sei lá, não é tão profundo.

Mas acho que com as cotas nas universidades formando leitores e professores com outros tipos de interesse, isso está mudando…
Agora posso parecer uma grande novidade. Uma coisa diferente, que provoca curiosidade, mas até quando? Qual vai ser a próxima explosão? O que vai interessar às pessoas depois disso? Acho até que alguns têm receio de falar mal desse livro porque sou uma mulher preta. Já começo a ouvir coisas como: “Ah, mas esses contos são repetitivos, não têm técnica, têm muitos personagens”. Carolina Maria de Jesus também foi uma explosão, e vimos o que aconteceu depois, né? Não sei se tenho condições de me estabelecer pelo que escrevo, mas quero que essas histórias fiquem registradas.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.