O filósofo francês Michel Foucault (DEA Picture Library/De Agostini Picture Library via Getty Images)

Filosofia,

A encruzilhada da verdade em Foucault

Conjunto de textos ajuda a entender a torção teórica e o plano de voo do filósofo francês para uma nova maneira de pensar

29jan2025 | Edição #90 fev

O roteiro de Foucault nos anos 70 parecia claro. Pensar o poder, inicialmente a partir da disciplina psiquiátrica e de tipos sociais como a criança histérico-perversa, a mulher naturalizada e o jovem perverso. Depois disso seria preciso pensar as relações entre raça e população para chegar ao problema da vontade de saber e ao dispositivo da confissão.

Desta forma o autor de História da loucura e As palavras e as coisas pretendia descrever a infraestrutura da governamentabilidade capaz de explicar a aparição histórica do dispositivo da sexualidade. Neste roteiro, o tema cristão da confissão deveria mostrar sua dependência com as práticas e saberes sobre o prazer na antiguidade greco-romana. A passagem da afrodisia à ars erótica, e desta à ciência da sexualidade, tinha como objetivo investigar sob quais condições e em que termos é possível dizer
a verdade ao poder.

Mas algo deu errado no plano de voo, anunciado em 1975, com o primeiro volume da História da sexualidade: a vontade de saber. Só um grande pensador consegue mudar de rota quando se vê diante de um verdadeiro achado que contraria o sentido de sua pesquisa. O conjunto de treze textos, quase todos inéditos, agora publicados pela editora Ubu, representa uma verdadeira arqueologia do pensamento foucaultiano. Uma arqueologia que nos ajuda a entender melhor tanto o esforço de síntese metodológica, expresso em Arqueologia do saber, quanto a construção do roteiro dos anos 70.

Uma arqueologia também porque uma parte substancial do material encontrado em caixas do período em que Foucault viveu em Túnis está sob forma de quase-textos, ou seja, esquemas de aula, esboços de conferências e marginálias aos textos anteriores, sobre loucura, literatura e linguagem. Situam-se entre 1965 e 1967, ou seja, em torno da data chave de 1966, tida como ano de apogeu máximo do estruturalismo, mas também início de seu declínio ou metamorfose em pós­-estruturalismo. Momento provável da passagem do método arqueológico para a perspectiva genealógica que presidirá o grande projeto sobre a sexualidade e o poder.

Sombra das sombras

Até então o sujeito em Foucault é o termo a ser deduzido arqueologicamente da relação entre linguagem e verdade, dos jogos entre poder e resistência, do corte entre estruturas etnológicas e acontecimento histórico. Mas a partir daqui começa a ganhar impulso um retorno ao que se poderia chamar de a “sombra das sombras”. Se a loucura é a sombra do que outrora foi a experiência do sujeito trágico, agora é neste mesmo sujeito que se buscará a potência de um novo regime de verdade.

Se antes a linguagem reinava soberana, material e incontornável contra a representação, mentalista e psicológica, agora é o problema da realidade extralinguística (ou da ontologia) que retorna. Se antes a história aparecia como sombra da estrutura, agora é a estrutura que se dobra ao poder histórico dos corpos, dos acontecimentos e da renovação das ficções. Como se Foucault passasse a se interessar cada vez mais pelos intervalos delimitados pela estrutura, pela contingência e não apenas por seus efeitos, coerções e necessidades lógicas. Intervalos que se poderiam situar entre oralidade e escrita; entre enunciado e enunciação; e entre sujeito e verdade.

Parte do material foi encontrado em caixas do período em que Foucault lecionou em Túnis, entre 1966 e 1967

É assim que se infere o sujeito platônico contra a escrita e o sujeito estoico, situado entre o enunciado e a enunciação. Mas a partir de um certo ponto na pesquisa sobre a confissão, mais precisamente, depois do primeiro volume da História da sexualidade e antes da redescoberta dos gregos em A hermenêutica do sujeito, algo de novo se acrescentou a esta equação. Algo que introduziu a verdade como contingência performativa e resistência ao poder na relação a si, antes que esta se tornasse tecnologia e cultura de si. Desde então se poderia localizar uma terceira oposição: entre verdade e narrativa.

Isso significaria romper com a ideia de regimes de verdade e com o kantismo residual de Foucault, que se concentra nas condições de produção da verdade. Neste movimento, Foucault passa a ser um pensador da transformação, conforme sua tese de que a história serve a uma ontologia do presente. A potência transformativa da verdade, na medida em que ela retorna na relação a si, pela palavra oral até a enunciação da verdade (parhesia), a fala franca, recusada para a loucura, capturada pela literatura e forçada contra a linguagem. Talvez seja por isso que 1966 seja também o momento foucaultiano de Lacan, assumindo a pertinência da função de autoria, analisando a função das estruturas fantasmáticas de ficção e a coercitividade gozosa dos discursos.

Nova crítica

A torção foucaultiana é ainda opaca para muitos leitores do estruturalismo, o que acarreta dificuldades consideráveis para entender a nova crítica, de extração norte-americana, e o papel que nela exerce o chamado pós-­estruturalista. Tanto os que se aferram ao nada-fora da linguagem, seja como textualismo, seja como close reading, quanto os que pretendem negar o estruturalismo e, ainda, os que pretendem radicalizar suas consequências filosóficas e psicanalíticas deveriam se ater a esta declaração foucaultiana feita precisamente no apogeu da confiança no método estrutural:

É esse “fora”, é esse extralinguístico imanente à obra que a crítica justamente não deve deixar de fora de seu discurso. A análise literária não tem que imitar a obra, nem repetir, nem se unir à sua intimidade, nem a interpretar (como um texto sagrado); ela tem que se alojar justamente neste exterior que é a localização que lhe é própria. Podemos definir o papel da análise literária dizendo que ela tem de transformar em enunciados o extralinguístico imanente ao discurso da obra.

Ou seja, nem a psicologia do autor, nem as estruturas positivas da linguística. Nem a voz anônima de logos, nem apenas o ato de fala individual. Como os performativos, não estamos nem na verdade, nem no falso, mas na ordem na qual a linguagem faz existir, segundo um certo ritual suscetível de falha e ficção, segundo um intervalo entre o que é dito e o que não é dito e ainda assim condicionado pela estrutura gramatical.

O interesse na potência política da linguagem se deslocará do escrito para a fala nos trabalhos que sucedem esse momento

Temos então quatro problemas fundamentais que assediam Foucault e que nos ajudam a entender sua torção autocrítica, mas também seu plano de voo para uma nova maneira de pensar:

• O problema do infinito, representado na figura do saber absoluto, tematizado no texto que comenta o Flaubert de Bouvard e Pécouchet, entre a tentação do saber sobre o erro, ilusão e engano (demoníaco) e a aspiração ignorante de um saber absoluto;

• O problema da causalidade, imprescindível e incontornável para uma teoria consistente da história. Causalidade não é determinação estrutural, mas redução metodológica da força performativa da escrita. Causalidade também não é uma noção estritamente lógica, ainda que se possa tentar reduzí-la ao argumento na forma “se… então”. Chegamos assim a uma espécie de abismo entre antropologia (etnologia) e história (acontecimento);

• O problema da ontologia histórica do sujeito, presente nos ensaios “Literatura e loucura: a loucura no teatro barroco e no teatro de Artaud” e “O extralinguístico e a literatura”. Como capítulo histórico de uma certa contramodernidade, o barroco parece ser o caso da contraciência do século 17, a permanência do sujeito da espiritualidade, no momento exato de consolidação e de vitória do sujeito do conhecimento;

• O problema do limite, antes do qual, ou depois do qual, a loucura emerge como verdade relativa a um outro domínio. Aqui veremos como o tema da loucura barroca introduz o mundo da morte ou da quase morte ou do encontro impossível. Por meio do atravessamento do limite da identidade, “a verdade aciona o mecanismo trágico” pelo qual emerge um mundo fantástico de erros, ilusões e confusões. A partir de então, identidade e diferença, loucura e razão, linguagem e mundo serão pensados como um regime de risco e indeterminação, e não mais apenas como uma condição de possibilidade ou de impossibilidade.

Síntese

Acompanhando a problematização conjunta destes tópicos se pode encontrar não apenas uma síntese, bastante prática e didática, de obras como História da loucura, As palavras e as coisas e O nascimento da clínica, bem como a gênese retrospectiva do momento de viragem foucaultiano. Emerge assim — como a sua crítica do estruturalismo — sua insatisfação com os limites do método arqueológico­-estrutural, que decorrem de um confinamento imprevisto nas ciências do documento, campo que ele mesmo definirá como deixológico.

A comparação de texto com texto ganha em rigor o que ela perde em termo de entendimento da agência necessária para pensar processos transformativos. Isso explica por que o interesse na potência política da linguagem se deslocará do escrito para a fala nos trabalhos que sucedem esse momento.

Ajuda também a reposicionar o lugar da psicanálise no empreendimento de Foucault, de sua posição inicial no quadro de uma antipsicologia — depois efeito periférico da crise da psiquiatria, onde a confissão adquiria o valor de prova de seu compromisso disciplinar — para uma prática capaz de exercer resistência ao poder, lugar da relação a si, cuidado e eventualmente enunciação da verdade.

Quem escreveu esse texto

Christian Dunker

Psicanalista, escreveu Reinvenção da intimidade (Ubu).

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “A encruzilhada da verdade em Foucault”

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