Literatura japonesa,

Beleza, tristeza e luto infinito

Último romance escrito por Yasunari Kawabata explora as consequências de se revisitar um amor do passado

01mar2023 | Edição #67

O luto infinito foi muito bem apresentado no romance Beleza e tristeza, publicado em 1964 pelo primeiro Nobel japonês de Literatura, Yasunari Kawabata (1899-1972). No Brasil, seus trabalhos mais conhecidos são O país das neves (2004), Mil tsurus (2006), O som da montanha (2009) e o mais célebre e muito comentado A casa das belas adormecidas (2004), todos pela Estação Liberdade. Participando ativamente das vanguardas japonesas dos anos 30, o escritor teve sua vida atravessada por lutos. O primeiro foi o da irmã, entregue aos cuidados de uma tia, que regressa aos dez anos de idade e falece no ano seguinte. Aos sete ele perde a avó, aos quatorze o avô e, aos quarenta, passa pela Segunda Guerra Mundial.


Beleza e tristeza, publicado em 1964 pelo primeiro Nobel japonês de Literatura, Yasunari Kawabata (1899-1972)

A grande perda e sua improvável reparação é também o tema central de Beleza e tristeza. Nesse romance extremamente sensorialista, em que pintura e literatura conversam em forma e conteúdo, Otoko, então com dezesseis anos, engravida de Oki, um escritor mais velho, casado e pai de um filho. Ela perde a criança e ele se evade. Desde então o bebê perdido torna-se a peça fundamental da vida de Otoko, mas às custas de uma suspensão indeterminada e inconclusa de seu luto. Ela se impede de casar ou de amar qualquer outro homem:

— Lamento pela senhora, mas não posso me casar.
— Diz ela diante de um dos pretendentes que a mãe quer lhe apresentar.
— Não existe mulher que não possa se casar.
— Existe.
— Se você não se casar, não teremos quem nos sepulte.
— Não sei o que dizer.
— São os mortos que não têm quem chore por eles.

Desencontros

Otoko aparentemente não sabe que ela tem uma irmã, fruto de um relacionamento extraconjugal do pai. Sua mãe oculta o fato, mas ele parece emergir, repetidamente, na maneira como ela engravida de um homem casado, que a abandona logo em seguida. A recusa em se casar é ao mesmo tempo um elogio e uma homenagem ao amor que, ainda que interditado, Otoko continua a sentir por Oki. Um amor que tem uma curiosa ligação com a liberdade e a tristeza. Como tantas mulheres marcadas por um desencontro sexual, ela passa a vida “pensando no senhor Oki”.

O romance é extremamente sensorialista: pintura e literatura conversam em forma e conteúdo

A cada pretendente que ela nega, volta a lembrança das barras de ferro da janela do hospital psiquiátrico, onde fora internada depois de tentar o suicídio. Ou seja, ao contrário da intencionalidade decidida, que marca muitas vozes femininas em devastação, aqui o leitor está diante de um juízo em estrutura de futuro contingente: o que teria sido melhor, a prisão do casamento, a privação da arte ou a liberdade marcada por um destino que poderia ter sido outro?

Tudo se passa como se a personagem estivesse condenada a viver uma espécie de versão b de sua própria existência, mas a narrativa, em vez de nos conduzir para duas superfícies que nunca se comunicam entre si, propõe inversões nos nossos próprios pressupostos sobre onde está a verdadeira vida: na beleza à qual ela pode se dedicar, mas faltante o amor; ou na tristeza, da qual pode se consolar, mas renunciando ao amor. É uma alternativa narrativa consistente ao dilema da bolsa ou a vida. Ou seja, parece compulsório que entre uma vida sem a bolsa e uma não vida escolhamos a vida “desembolsada”.

Kawabata, contudo, propõe um ardil mais astucioso pois sugere que uma vida sem a realização de sonhos pode ser, ainda assim, uma vida digna de escolha, simplesmente porque no lugar do não acontecido vem a arte.

Tudo indica que Otoko decide continuar a amar exatamente assim: em ausência. Para a pintora consagrada, tudo se desequilibra com a chegada de uma discípula, Keiko, disposta a realizar todos os seus desejos. Em meio a uma espécie de idealização amorosa pela mestra, ela opera no registro do decaimento equivocado do amor em desejo e do desejo em demanda. Uma lição maior para todos os que entendem que amar é preencher lacunas. O adiamento consentido de seu próprio destino desdobra-se na infinita postergação de sua obra mais planejada, “Ascensão do recém-nascido”.

Inversamente, apesar de escritor consagrado, Oki jamais consegue superar o sucesso de seu primeiro livro, A jovem de dezesseis anos, que retrata de modo autobiográfico o romance trágico vivido com Otoko. Crítica bem-vinda para nossos tempos em que a literatura parece não conseguir — nem pretender mais — superar a vida. Depender de vidas exemplares faz o artista medíocre. Mas aquilo que uma não consegue começar, o outro não consegue superar. Contradança simbólica para manter ativo um amor desencontrado. Captação precisa do drama contemporâneo pelo qual viver um grande amor é degradá-lo em farelos e pijamas da vida cotidiana. Ao contrário, destruir o que pode ser é a melhor maneira de preservar o que poderia ter sido. Temos aqui a emergência vindoura do tema do fetiche na obra de Kawabata.

O preço pago por esta decisão deliberada de jamais concluir o luto — seja o luto do filho, seja o do amante, seja o do amor — é justamente uma forma de enaltecimento e preservação do que poderia ter sido no interior do que se perdeu. Forma clínica do que viemos a chamar de luto infinito. Como em Marguerite Duras, eles estão distantes, mas não separados. Suas vidas continuam a referir-se uma à outra, em suas próprias solidões, como na cena que abre o livro: “Observar aquela única poltrona girando no vagão vazio faz Oki se sentir solitário”.

Contrastes

O livro trabalha com o contraste entre o escritor e a pintora, entre as palavras e as imagens, entre a sensação e sua nomeação. O ponto de desequilíbrio, simétrico ao filho perdido, é Keiko, jovem apaixonada, quase-filha, que quer se vingar de Oki para se tornar uma verdadeira mulher para sua dama infinitamente tomada pela incompletude. Ao contrário do romance ocidental típico, em vez de esse propósito ser escondido dos personagens, mas revelado ao leitor, no livro de Kawabata a vingança é explicitada tanto para a mestra quanto para o filho de Oki, com quem ela se envolve. A equilibração das perdas, tema tão caro ao romance ocidental, aparece aqui ironizado pelo olhar oriental, que vê nessa vingança um desperdício e uma incompreensão de como a ausência e a irrealização de um grande amor pode torná-lo um grande monumento estético.

A vingança como ato de amor equivocado encontra uma espécie de autorização simbólica quando, depois de muito tempo, Oki vai visitar Otoko. O pretexto não poderia ser menos epifânico: juntos, podem escutar as badaladas do sino de Quioto. Contudo, a astúcia dialética de Oki a impede de comparecer. Em vez disso, responde ironicamente ao convite, enviando em seu lugar a Outra. Ao mandar sua discípula, quase filha, sucedânea do filho que não aconteceu, ela devolve a carta do sofrimento, mas também da escolha do Outro para o encontro marcado com a solução do seu destino pendente. Ele, por sua vez, volta à cena do crime em busca do remédio para sua mediocridade criativa, quiçá a cura e a absolvição da culpa pela qual se impede de criar. Oki, como um verdadeiro psicanalista, parece interpretar nesse pedido uma demanda de reparação.

No entanto, quem realmente sente ciúme não é Oki nem Otoko, mas a própria Keiko, que disputa o amor da mestra com um fantasma do passado. Keiko, por sua vez, vem de uma série de abandonos que marcaram sua vida, duplo autoficcional do próprio Kawabata. Ela se desdobra em duplicação imaginária. Pede para ser pintada, como a se oferecer em substituição ao amor perdido, pelo filho perdido e pelo amante perdido. Por outro lado, “adivinha” o desejo da mestra, agindo na vingança, como ato paradoxal de amor. Destruir a família de Oki, seja seduzindo-o, seja seduzindo seu filho Tachiro, como um dia Otoko teria destruído a família e o futuro de Oki.

Um detalhe importante atravessa transversalmente todas as cenas. Otoko morde a mão de Oki durante o aborto. Keiko lambe e morde a mão queimada de Otoko. Tachiro morde a mão de Keiko. Keiko, por sua vez, não se deixa morder nem tocar nem lamber. A cada vez ela se cria um seio interditado, direito ou esquerdo.

O corpo desencontrado, o corpo perdido, o corpo que poderia ter sido, o corpo que um dia será posto em imagem ou gravura, o corpo porvir, este corpo indeterminado do romance de Kawabata é o que o torna também tão contemporâneo.

Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Christian Dunker

Psicanalista, escreveu Reinvenção da intimidade (Ubu).

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.