Educação,

Ex-ministros contam tudo

Livros reúnem dados e depoimentos de chefes do Ministério da Educação desde o final da década de 1970 até o governo Dilma

01dez2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

No final de março de 2015, o professor de filosofia Renato Janine Ribeiro estava fazendo um exame médico em São Paulo, onde mora, quando recebeu uma ligação de Aloizio Mercadante, então ministro da Casa Civil: era um convite para assumir o Ministério da Educação (MEC). Janine aceitou a proposta de pronto — no dia seguinte já estava em Brasília para conversar com a então presidente Dilma Rousseff, que lhe disse estar feliz com “um pensador no ministério”. Assumiu oficialmente o posto em abril — e deixou a pasta seis meses depois, após tomar conhecimento de sua exoneração por uma notícia do portal UOL. Foi substituído pelo mesmo Mercadante que lhe havia telefonado.

Os percalços de um acadêmico em um dos cargos centrais do segundo governo de Dilma, que tinha como slogan “Brasil, pátria educadora”, estão descritos em A pátria educadora em colapso. A obra é uma espécie de autobiografia centrada no período em que Janine ocupou a posição de ministro, apontando erros e acertos da gestão. Vai além: contextualiza e conjectura as causas da crise do próprio governo, que culminou no impeachment em 2016. E ainda traz propostas para a educação no país, como fomentar intercâmbios entre universidades da América do Sul, prática corriqueira entre universidades europeias. Essa parte tem um gosto de “era isso que eu queria fazer, mas não deu tempo”.

Filmagem clandestina

O texto leve, solto e muitas vezes divertido, apesar das muitas digressões — ou poucas, considerando que ele é um acadêmico da filosofia —, revela o que parece ter sido descoberto no susto: a chefia máxima da educação no país pode ser uma sequência de episódios inimagináveis. 

Em um deles, o ex-ministro conta que recebeu em seu gabinete quatro deputados católicos e conversou sobre a importância de abordar a educação sexual nas escolas para evitar transmissão de doenças, abuso sexual e gravidez indesejada — no Brasil, um em cada cinco nascidos vivos é filho de adolescente, diz o Datasus. “Só biologia”, respondiam. Ele não sabia que estava sendo filmado sem autorização com transmissão para uma sala de rezas ao lado do gabinete. Os parlamentares queriam mostrar que estavam lutando contra a “ideologia de gênero”.

Embora muito mais acadêmico do que gestor — fez mestrado na Sorbonne, reduto dos filósofos de elite —, Janine não era novato em Brasília. Antes, fora por cinco anos diretor de avaliação da Capes, agência ligada ao MEC responsável pela verificação de qualidade e consequente distribuição de recursos do sistema de pós-graduação do país. Já havia sido sondado para o Ministério da Cultura (MinC). 

Contando os ex-ministros falecidos, dá uma média de um titular a cada dois anos desde 1979 — e só uma mulher, Esther Ferraz (1982-85)

Quando chegou à pasta de educação, havia nas redes sociais a campanha “Renato Janine para o MEC” — fato que ele destaca no livro como algo inédito no país (deve ser mesmo). Hoje, aposentado pela USP, ele atua como professor visitante na Unifesp, Universidade Federal de São Paulo.

Com clara inclinação à esquerda, Janine não era petista — ao contrário, tinha acabado de criticar o governo do PT em uma entrevista à revista Brasileiros quando recebeu o convite. Esse momento aparece em outro livro, Quatro décadas de gestão educacional no Brasil, assinado pelo jornalista Antônio Gois. A obra traz dados oficiais de educação e uma coletânea de entrevistas com catorze ministros da pasta (incluindo Janine), do final da ditadura ao fim do segundo governo de Dilma. Contando os ex-ministros falecidos, dá uma média de um titular a cada dois anos desde 1979 — e só uma mulher, Esther Ferraz (1982-85).

Em sua primeira conversa com Dilma em Brasília, Janine ouviu que não seria preciso explicar as críticas da Brasileiros. Estava tudo certo. A relação com a presidente, no entanto, nem sempre foi algodoada. As conversas com ela foram poucas, e, apesar de ter participado de reuniões internacionais com figuras como Angela Merkel e Obama — encontros que descreve em detalhes —, nem ele nem seus colegas ministros conseguiram se pronunciar nos eventos. Dilma, à diferença daqueles chefes de Estado, era muito centralizadora. 

Número de analfabetos

O professor assumiu a pasta no lugar de Cid Gomes, ex-prefeito de Sobral (CE) de 1997 a 2004 e ex-governador do Ceará (2007-14), conhecido por ter deixado o estado com os melhores indicadores educacionais do país. No MEC, Gomes durou menos de três meses: saiu após se tornar pública uma crítica a deputados em uma reunião na Universidade Federal do Pará (UFPA) — e que irritou Eduardo Cunha, então presidente da Câmara. 

Na época de Cid Gomes e de Janine no MEC, o país tinha 7% de analfabetismo adulto e 6% das crianças de 4 a 17 anos fora da escola, de acordo com dados do livro de Gois. Para efeito de comparação, no final da ditadura, a taxa de analfabetismo adulto girava em torno de 21%, e 35% das crianças de 4 a 17 anos estavam fora da escola.

Janine apoiou a elaboração da Base Nacional Comum Curricular, cuja primeira versão para o fundamental (seis a catorze anos), hoje aprovada, foi lançada em sua gestão. Na educação básica, a ideia era trabalhar com capacitação de diretores de escolas em um programa nacional. Queria que conhecessem os dados de infraestrutura da escola onde atuam e o desempenho dos alunos para melhor administrar. 

O anúncio da proposta, que não chegou a ser executada, foi feito um mês antes que ele passasse o bastão do MEC para Aloizio Mercadante. (A audiência sobre sua demissão com a presidente — que teve até abraço — veio depois do anúncio da imprensa.) 

Quando ainda era ministro, Janine me contou durante um café — e retoma isso no livro — que, já que havia poucos recursos, era hora de avaliar o que estava em andamento e providenciar ajustes. Fez isso no programa de financiamento estudantil Fies, que passou a priorizar áreas como as diversas engenharias e a saúde. 

Sem conseguir convencer as universidades federais de que faltava dinheiro, foi atacado nos seis meses de sua gestão — o que resultou em uma longa greve por aumento de salários. Daí veio o maior erro de sua gestão: “Deveria ter pedido autorização à presidente para ir à televisão e informar a sociedade […] que o Brasil todo estava apertando o cinto”.

Sem conseguir convencer as universidades federais de que faltava dinheiro, Janine foi atacado nos seis meses de sua gestão — o que resultou em uma longa greve

As duas obras, A pátria educadora em colapso e Quatro décadas de gestão educacional no Brasil, compõem uma coletânea rara de livros sobre gestão pública do ponto de vista dos gestores. O próprio Janine diz que viu poucos títulos semelhantes no mundo — um deles é Adults in the Room, best-seller de Yanis Varoufakis, ex-ministro de finanças da Grécia, no cargo também por seis meses, em 2015 [livro resenhado por André Lara Resende na edição 8 da Quatro Cinco Um]. 

Ambas são (ou deveriam ser) para qualquer tipo de leitor — não apenas acadêmicos ou interessados em educação. Em tempos em que todo mundo parece ter certezas sobre como deveriam funcionar as escolas no país, nada melhor do que um pouco de história, dados e atos para embasar nossas convicções.

Quem escreveu esse texto

Sabine Righetti

Jornalista e pesquisadora doutora em política científica, é finalista de um Jabuti com Direito à educação: aspectos constitucionais (Edusp).

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.