Divulgação Científica,
Progesterona na mesa
Livros demonstram como até o campo da pesquisa científica está sujeito a distorções geradas por preconceitos de gênero
28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19No final do século 19, em seu livro A origem do homem e a seleção sexual e em correspondência privada, Charles Darwin afirma que “a diferença intelectual entre homens e mulheres é demonstrada pelo fato de que os homens são superiores em qualquer empreitada a que se arrisquem, seja a reflexão profunda, o raciocínio, a imaginação, e até o uso dos sentidos e habilidades manuais”. Para ele, mulheres eram menos evoluídas.
Isso seria resultado da pressão reprodutiva imposta aos machos, que competem entre si para acasalar, enquanto às fêmeas basta esperar e escolher. Eles, portanto, evoluíram para ser mais fortes, mais inteligentes, guerreiros e caçadores. Em carta a uma sufragista americana, Darwin ponderou que a mulher só alcançaria o estágio evolutivo do homem ao se tornar arrimo de família, o que prejudicaria a prole e a felicidade do lar.
No início do século 21, em uma palestra sobre diversidade de gênero na ciência, Lawrence Summers, então reitor da Universidade Harvard e futuro diretor do Conselho Nacional de Economia do presidente Obama, disse que “parece haver em muitos atributos humanos, como altura, peso, propensão para o crime e habilidades matemáticas e científicas, uma diferença de vários desvios-padrão entre homens e mulheres”. Uma das evidências, segundo ele, seria o modesto número de mulheres em posições hierarquicamente importantes nas ciências, finanças e indústria, consequência não apenas da falta das tais habilidades, mas da preferência feminina por cuidar da família.
Darwin e Summers têm pontos em comum: são homens, brancos e membros da classe dominante. Summers vem de família ilustre — seus pais eram economistas da Universidade Yale, e dois de seus tios, um do lado materno e outro do paterno, ganharam o Prêmio Nobel de Economia. Darwin era filho de um conceituado médico e financista, e tinha dois tios abolicionistas de renome, um do lado materno e outro do paterno.
Essas semelhanças estão na raiz dos argumentos apresentados tanto em Inferior é o c*ralhø (o título em inglês é mais comedido) quanto em Testosterona rex: a ciência e a cultura foram definidas, formadas, ditadas por homens com preconceitos e visões de mundo. É preciso questionar o consenso, inclusive o científico, quando ele é produzido por um grupo do mesmo sexo, da mesma etnia e da mesma classe social.
Em Inferior, a inglesa Angela Saini, repórter de ciência com mestrado em engenharia, examina pesquisas científicas sobre diferenças entre os sexos, desde Darwin até hoje. Supostamente os hormônios sexuais afetam o desenvolvimento e funcionamento do cérebro, dotando as meninas de maior capacidade empática, e os meninos, de maior sistematização. A mulher é o sexo frágil, apesar de viver mais do que o homem e ser mais resistente às doenças. Os homens são promíscuos e as mulheres tendem à monogamia. E assim por diante.
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As inúmeras entrevistas com cientistas — homens e mulheres — dão cor ao relato. É uma espécie de longa reportagem que explica as pesquisas com simplicidade, mas sem simplismo. Os estudos citados abrangem neurociência, psicologia, medicina, antropologia e biologia evolutiva.
Ao final, salta aos olhos a mudança de perspectiva nos estudos das diferenças sexuais com a entrada de mulheres nas universidades, só ocorrida no século 20. Com maior participação feminina, muito do que era ponto pacífico foi posto em xeque.
É preciso questionar o consenso científico quando ele é produzido por um grupo do mesmo sexo
Sarah Blaffer Hrdy, primatóloga e antropóloga da Universidade da Califórnia, começou sua pesquisa nos anos 1970, estudando uma espécie chamada langur. Na época, a área era dominada por homens. O consenso entendia que a evolução das espécies resultava do comportamento do macho, sempre sob pressão para atrair o maior número de fêmeas e aumentar a chance de passar adiante seus genes, algo parecido com o que disse Darwin. Segundo a ciência da época, os langures machos eram agressivos, competitivos, criativos e inteligentes em suas estratégias de caça. Já as fêmeas eram submissas, passivas e sexualmente tímidas.
Primatas valentes
Não foi esse o quadro que Hrdy observou quando foi a campo. Ao chegar ao Rajastão, na Índia, ela encontrou uma população de primatas, os langures Hanuman, sofrendo uma epidemia de infanticídio em que os machos matavam os filhotes. Ninguém entendia por que um animal matava um filhote saudável de sua própria espécie. A primatóloga descobriu que os machos assassinos não eram necessariamente do mesmo grupo reprodutivo. A motivação que os impelia ao extermínio era cruzar com as mães dos filhotes assassinados.
Sem a cria, as fêmeas ficavam aptas a acasalar novamente. Com os pequenos na barra da saia, ainda demoraria mais um ano. Hrdy provou que aquele infanticídio entre primatas era uma estratégia reprodutiva, e não uma loucura coletiva. Depois, o comportamento foi observado em mais de cinquenta outras espécies.
Mas é outra descoberta que nos interessa: a defesa da prole pelas mães. A cientista notou que elas não assistiam passivamente à chacina, mas cooperavam umas com as outras para lutar contra o macho agressor. Também eram promíscuas: cruzavam com vários machos, mesmo prenhes. Elas se aventuravam até por territórios de grupos rivais, colocando-se em grande risco para encontrar mais parceiros sexuais. Hrdy percebeu que os infanticidas atacavam apenas filhotes de fêmeas desconhecidas. Levantou-se a hipótese de que, à medida que os parceiros aumentavam, diminuía o número de potenciais assassinos.
Antes de Hrdy, os cientistas observavam apenas os machos, e portanto se concentraram em agressão, competição, dominação e caça. Como os primatas são nossos primos mais próximos na cadeia evolutiva, especialmente a família dos hominídeos — que inclui chimpanzés, gorilas, orangotangos e humanos —, é comum que a ciência se baseie no comportamento deles para entender a evolução da nossa espécie.
Os hábitos dos animais estudados até aquele momento induziam os cientistas a concluir que o homem primitivo também seria agressivo, competitivo, dominador e valente, uma vez que, responsável pela alimentação do grupo, precisaria empreender caçadas perigosas. Era igualmente essencial lutar com outros homens para ganhar acesso às mulheres.
Cada homem precisava ser mais atraente, forte e inteligente do que o vizinho, para poder inseminar muitas mulheres e fazer muitos bebês, garantindo assim a transmissão de seus genes superiores. Enquanto isso, as mulheres cozinhavam e cuidavam das crianças. Já que seu investimento durante a gestação e a amamentação é muito mais intenso e custoso que o do homem, teriam poucos parceiros sexuais. Não lhes traria vantagem multiplicá-los. Para fecundar o óvulo, basta um espermatozoide. Para que, então, correr o risco associado à diversidade? Esse comportamento cauteloso também era observado nos grupos de caçadores-coletores que ainda existem.
O panorama mudou quando chegaram as antropólogas, entre elas Hrdy. Elas notaram que nesses grupos caçadores-coletores remanescentes as mulheres eram as coletoras responsáveis por até 60% das calorias consumidas por todos. Os homens se arriscavam em caçadas perigosas e longas, de sucesso incerto. Sem o trabalho das mulheres, os indivíduos morreriam de fome. Outro comportamento comum — entre os !Kung de Botsuana, por exemplo — eram os casos extraconjugais. Assim como as langures, também as mulheres !Kung têm muitos amantes às escondidas.
Saini aponta práticas sociais que parecem contradizer a noção da mulher casta e tímida, à espera do macho que a insemine e cuide dela e de seu bebê. São costumes milenares até hoje em uso que servem para controlar a vida sexual de mulheres e meninas de várias formas e em diferentes graus de intensidade e gravidade, e presentes no mundo todo.
Na sociedade ocidental moderna, persiste o mito da mãe e esposa: a mulher decente com quem os homens querem casar — contraposta à vagabunda, à puta, à que não soube segurar seu homem e tem filhos de pais diferentes. Essas duas categorias recebem tratamento desigual, com enorme desvantagem para quem se encaixa no segundo grupo.
Em outras sociedades ainda, as mulheres são proibidas de sair sozinhas, de mostrar os cabelos, de trabalhar, dirigir e votar, e são obrigadas a se casar mesmo antes da puberdade com um homem da idade de seus pais.
A prática mais alarmante de controle sexual é a mutilação genital ainda praticada em trinta países da África, da Ásia e do Oriente Médio, além de em incontáveis comunidades expatriadas espalhadas pelo mundo. Essa violência quer garantir a virgindade e a subsequente fidelidade da mulher ao marido, atestando a paternidade das crianças. Para uma mulher que teve o clitóris extirpado, e muitas vezes também os grandes e pequenos lábios, o sexo é extraordinariamente doloroso. Paga-se um preço alto pela liberdade sexual que, segundo a ciência, as mulheres nem sequer desejariam.
Alguns estudos citados por Saini também aparecem em Testosterona rex: mitos de sexo, ciência e sociedade, da australiana Cordelia Fine, professora de psicologia e filosofia da ciência na Universidade de Melbourne. Com base nos avanços em neurociência, biologia evolutiva, ciência comportamental e endocrinologia, Fine mostra que a relação entre a testosterona e a dominação dos machos sobre as fêmeas, ao menos entre humanos, não é natural, mas cultural.
O senso comum nos leva a imaginar que a testosterona — hormônio responsável pelo desenvolvimento dos testículos e de características sexuais secundárias como massa muscular e óssea, pelos no corpo e voz grossa — tem o poder de determinar o comportamento dos homens, conferindo-lhes atributos como capacidade de liderança, assertividade, propensão à violência e apetite para o risco e o sexo.
O livro nos apresenta a complexidade dos comportamentos sexuais, não apenas entre nós, humanos e outros mamíferos, mas também entre pássaros e peixes. “O sexo”, diz a autora, “não é um ditador biológico que arremessa hormônios gonadais em carreira desabalada pelo cérebro, masculinizando de maneira uniforme cérebros masculinos e monotonamente feminizando cérebros femininos. A diferenciação sexual do cérebro acaba por ser um processo interativo e desordenado, em que múltiplos fatores — genéticos, hormonais, ambientais e epigenéticos — atuam e interagem para afetar o modo como o sexo forma o cérebro como um todo.”
Testosterona rex é dividido em três partes: passado, presente e futuro. Primeiro explica as pressões evolutivas que sofremos como espécie para chegar até aqui; depois, examina questões de sexo, relacionamento, amor, reprodução e as diferenças entre seres humanos do século 21 e nossos primos hominídeos; ao final, fala de como não podemos mais permitir que as diferenças biológicas entre homens e mulheres determinem nosso destino. Novos estudos científicos e o conhecimento que temos hoje da imensa diversidade de formas de organização social nas várias culturas não nos permitem essa simplificação.
A autora cita o biólogo evolutivo Mark Pagel: “Um humano recém-nascido deve estar pronto para juntar-se a qualquer grupo cultural na Terra, e sem saber qual. Nossos genes não sabem de antemão qual será o consenso desse grupo cultural acerca dos papéis apropriados para homens e mulheres […]. Alguns tipos de papéis futuros são mais prováveis que outros de acordo com a sociedade, sem dúvida, mas todos são possíveis”.
Em 2000, Simon Baron Cohen, professor de psicopatologia da Universidade de Cambridge, levou a cabo um estudo de grande repercussão mencionado nos dois livros. A pesquisa consistiu em mostrar para bebês recém-nascidos ou o rosto da assistente de pesquisa de Cohen, Jennifer Connellan, ou um móbile mecânico com fotografias de seu rosto. Se os bebês olhassem mais tempo para o rosto, seriam mais empáticos; caso preferissem o móbile, tenderiam à sistematização.
Os resultados indicaram uma diferença entre os sexos: 40% dos meninos preferiram o móbile e 25% olharam mais para o rosto da assistente de pesquisa. Quanto às meninas, 36% gostaram mais do rosto e apenas 17% deram mais atenção ao móbile. O restante não demonstrou preferência. As mulheres teriam, portanto, maior capacidade de empatia, e os homens seriam mais propensos à sistematização.
Fine mostra que a dominação dos homens sobre as mulheres não é natural, mas cultural
A diferença é pequena, porém significativa, em termos estatísticos, para o estudo repercutir positivamente na comunidade científica. Seus resultados são até hoje muito citados na imprensa e na literatura acadêmica. O próprio Cohen os evocou em defesa de Lawrence Summers, o ex-reitor de Harvard que em 2005 desacreditou as habilidades científicas das mulheres.
A partir desse estudo, Cohen desenvolveu a teoria da empatia-sistematização: mulheres são craques em interpretar emoções, homens em compreender sistemas (em ambos os sexos há os que chutam com os dois pés). Tais diferenças seriam produto dos hormônios sexuais. Exposição à testosterona no útero afetaria também o cérebro masculino em desenvolvimento, tornando-o mais propenso à sistematização.
Cohen, Connellan e seus coautores escreveram: “Demonstramos aqui, sem a menor sombra de dúvida, que essas diferenças são, em parte, biológicas em sua origem”. Foi esse “sem a menor sombra de dúvida” que deixou alguns cientistas com a pulga atrás da orelha. Em ciência, poucos achados são tão conclusivos, sobretudo quando se trata do comportamento de seres humanos, ainda mais recém-nascidos.
Em 2007, Alison Nash e Giordana Grossi, professoras de psicologia da Universidade da Cidade de Nova York, “dissecaram o estudo em um nível de detalhes forênsico”, diz Saini. Havia a questão da incontestabilidade dos resultados. Mas o principal problema era outro: Connellan conhecia o sexo dos bebês. Isso pode ter inconscientemente influenciado o modo como ela exibia cada um, talvez mexendo o rosto mais para as meninas, ou segurando o móbile de maneira a atrair a atenção dos meninos. Estudos assim devem ser feitos às cegas, para evitar vieses.
Um terceiro problema é levantado por Fine: não parece haver evidências de que, mesmo que os bebês tivessem demonstrado clara preferência pelo rosto ou pelo móbile, isso se traduziria mais adiante em maior empatia ou sistematização.
Falácia do espantalho
Inferior e Testosterona cobrem o mesmo terreno e têm inúmeros pontos em comum, citando muitas vezes os mesmos estudos. No entanto, Saini os trata com mais seriedade, entrevistando cientistas dos dois lados e aceitando pontos que podem não estar de acordo com suas convicções. Fine usa de mais ironia e emprega o tipo de argumentação que os americanos chamam de strawman, ou falácia do espantalho. Ele consiste em escolher a posição mais extremada de um debate, defendida por quase ninguém, e argumentar contra ela.
Como quando ela se bate contra a tese, defendida por David Schmitt, da Universidade Bradley, segundo a qual o homem pode inseminar cem mulheres em um ano, enquanto a mulher só pode ter um bebê. Isso confirmaria a hipótese da pressão evolutiva como motivação para o comportamento promíscuo do homem moderno. Fine então faz a conta de quantas mulheres estariam em período fértil, quanto tempo esse homem levaria para convencer cada uma a fazer sexo, e qual a chance de ela engravidar em um só encontro. Conclui que esse homem e um marido fiel teriam a mesma probabilidade de produzir um filho.
Nem Fine nem Saini negam as diferenças biológicas entre homens e mulheres. Pelo contrário, creem que elas existem e devem ser estudadas. O que essas autoras fazem, numa enxurrada de ciência, é analisar dados que, mal interpretados, mal-intencionados ou nunca replicados, servem de base científica para justificar a discriminação de gênero.
Elas entendem que a ciência não é neutra como se pensa. Cientista também está sujeito aos preconceitos e normas de seu tempo e de seus pares. Sendo a ciência, ainda hoje, feita principalmente por homens, é natural que os vieses sejam os masculinos. Em resumo: na ciência das diferenças sexuais, quem procura acha.
Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.