A autora Miranda July (Giovanni di Stefano/Divulgação)

Literatura,

Enfrentar o penhasco

Com franqueza e senso de humor, Miranda July fala da perimenopausa e do que essa fase tem de potencialmente destrutiva, perigosa e surpreendente

07fev2025

Este livro é muito irritante. Muito mesmo. A protagonista é autocentrada, intensa e carente. Tem um marido meio assim, uma ou duas namoradas pouco convincentes e uma criança não binária, o que obriga a autora, e especialmente a tradutora (a excelente Bruna Beber), a acrobacias admiráveis de linguagem. Apesar de tudo isso, ando recomendando por aí. Especialmente na saborosa tradução de Beber, que me fez gostar mais e me irritar menos com o livro.

Li a primeira vez em áudio, pela voz da autora, nas férias de fim de ano. Ouvi resmungando e revirando os olhos, mas também rindo. É irritante, porém engraçado. E me fez companhia — seja pela perspicácia das observações, seja pela sinceridade no tratamento da crise pela qual todas passamos ou passaremos: a perimenopausa, essa desgraçada que pega todo mundo de supetão, sem alerta e sem a informação que deveria nos ajudar a lidar com hormônios em extinção.

A protagonista e narradora sem nome, uma artista de carreira vaga, ganha um prêmio em dinheiro e decide ir para Nova York de carro, atravessando o país desde Los Angeles, onde mora. Ela nunca fez nada parecido e está apreensiva. É uma oportunidade de talvez sair do buraco criativo em que se encontra, de se curar de uma pequena depressão, um estado “borocoxô” (sacada linda de Beber, pois a palavra define como poucas esse momento da vida). 

Planeja tudo com cuidado, recebe o apoio do marido, da criança, das amigas, e parte. Só que a uma hora de Los Angeles ela para num posto de gasolina numa cidadezinha chamada Monróvia, vê um rapaz limpando o vidro do carro e não sai mais de lá. Sua viagem de conhecimento de si, que duraria três semanas, se transforma numa estadia de três semanas num hotel de beira de estrada.

‘Borocoxô’ — uma sacada linda da tradutora — define como poucas esse momento da vida

Ela fica obcecada pelo rapaz do posto, que logo descobre não ser do posto, mas da agência de aluguel de carros ali perto. E ele também fica obcecado por ela. Mas é casado, e bem casado, com sua namorada de adolescência. Planejam comprar uma casa e ter filhos. Ele não quer traí-la. Por isso a relação não poderia ser sexual, ao menos se definirmos sexo como penetração pênis-vagina. Acaba, porém, sendo a relação mais sexy de todas em um livro cheio delas. E a melhor cena entre eles envolve menstruação, real e metaforicamente o tema central da história.

Ela contrata a esposa do rapaz, que trabalha como recepcionista numa loja de decoração, para redecorar o quarto do hotel vagabundo onde passará tardes e tardes com o marido da moça. Para isso ela usa o dinheiro do prêmio. E a moça corresponde a todas as suas expectativas. O quarto fica lindo, aconchegante, com efeitos de luz e cores deslumbrantes, toalhas e lençóis macios e até um sabonete especial, cujo aroma arrebatador é elogiado por todos. Quem entra no quarto se encanta. E é nesse quarto que se desenrolam as cenas mais interessantes do livro.

E chega de spoilers por enquanto. 

Espelhos

Miranda July também é uma artista de carreira vaga, ou múltipla, tem uma criança não binária, era casada com o pai da criança e estava na perimenopausa quando escreveu De quatro — o livro tem muito de autoficção. Eu nunca havia lido ou assistido a nada dela, só sabia de sua existência. Mas quando comecei a ouvir que De quatro era o primeiro romance de perimenopausa, logo me interessei. 

Não sei se é mesmo o primeiro, até porque os algoritmos que governam minha vida não falam de outra coisa. Mas esta é, de fato, uma grande qualidade do livro: falar de forma franca e com senso de humor sobre o que é essa fase da vida e o que ela tem de potencialmente destrutiva, perigosa e surpreendente.

A escritora canadense Margaret Atwood tem uma boa frase sobre feminilidade e juventude em seu livro O assassino cego (recomendo esse também): “nessa idade, até as feias são bonitinhas”. E a protagonista de De quatro diz algo que vai no mesmo sentido: “Muito do que eu considerava feminilidade, era só juventude”. E se é assim, o que acontece na meia idade, quando a brusca ausência de hormônios some com essa feminilidade, de uma hora para outra? Como diz a personagem, o que fazer quando acaba a “fanfarra reprodutiva”?

A capa do livro, a mesma no mundo inteiro, é a imagem de um penhasco muito íngreme: a mesma inclinação do gráfico de produção de hormônios, reproduzido no texto, que a personagem traz de uma consulta médica. Lendo o gráfico com sua melhor amiga, ela diz:

Essa é uma mudança dramática que acontece no meio da vida. Olha só, é quase tão repentino quanto a puberdade. A linha sobe aos doze anos, aí fica estável por muito tempo, e essa foi a nossa vida adulta até agora, e aí cai. É isso, é o fim.

Sobre o gráfico masculino, sobreposto a esse, ela observa que é:

Uma mudança quase imperceptível. Enquanto eu caía da encosta íngreme da montanha, [meu marido] Harris ia a passos vagarosos por uma estrada de terra levemente inclinada, com um pedaço de palha no canto da boca, assobiando.

Em outro momento, ao voltar de um encontro com uma mulher mais velha em Monróvia, encontro que poderia tê-la convencido de que a vida não acaba aos quarenta e cinco, ela diz para o marido: “Você tem todo o tempo do mundo, mas eu estou prestes a morrer aqui, nessa casa!”.

Tanto a avó quanto a tia da personagem se suicidaram aos cinquenta e cinco anos por não suportar a perda dessa feminilidade cheia de colágeno. Quem não se apavoraria com uma história dessas na família?

Todo o livro é uma tentativa de não ceder ao penhasco, de não perder a vitalidade feminina da juventude. E essa é uma das minhas encrencas com De quatro: em parte alguma a personagem parece apreciar a libertação que poderia vir de não mais ser vista como objeto de desejo de homens ou mulheres, as oportunidades que isso poderia abrir para outros aspectos da vida, igualmente importantes. E também para uma sexualidade diferente. Uma amiga mais velha a quem ela recorre diz: “Acabam os impulsos hormonais, tudo fica mental”. Outra mulher explica, sem muito efeito: “Para alguém que passou a vida inteira sendo tratada de um jeito diferente porque era bonita e voluptuosa, foi uma alegria passar a não ser notada”.

O susto é real: nem ela, nem ninguém, está preparada para enfrentar a queda brusca de hormônios

Apesar desses relatos, a identidade da personagem continua ligada à sua atratividade sexual até o fim. Ela começa a fazer musculação para se manter jovem e, como tudo na sua vida, isso também vira uma compulsão. Começa a cuidar da pele, gosta de se sentir macia, hidratada. Gasta potes e potes de cremes. Só se tranquiliza quando se sente desejada por outros e outras.

Uma certa hora, ela diz: “afinal, eu não era mais jovem o suficiente para ser bonita e não poderia mais ser desejada por alguém bonito”. Seu alívio ao perceber que isso não é bem verdade me lembrou um afogado sentindo o abraço do salva-vidas. Por mais que este seja, sim, um livro sobre perimenopausa, sobre envelhecer, sobre mudar e aceitar a mudança, não me pareceu que a personagem tenha aceitado coisa alguma.

Ainda assim, a crise pela qual ela passa é muito reconhecível. A barafunda mental e emocional, o medo de que seja o fim da vida sexual, da criatividade, da vitalidade, tudo isso é real e muito bem descrito. O susto também é real, porque nem ela, nem ninguém, está preparada para enfrentar o penhasco da queda brusca de hormônios que são a perimenopausa e a menopausa. A tendência é atribuir as oscilações de humor, o estado borocoxô, o choro, a insônia, as dores no corpo, a problemas exteriores. Vem daí a obstinação da personagem em criar drama em sua vida. E como tem drama. 

Ela se joga em todos, de cabeça —se estrepa muitas vezes, porém não desiste. Não desiste de tentar, não desiste de seu desejo, não desiste de entender o que está acontecendo. Está atordoada, mas segue em frente. Como explica para a ginecologista: “Minhas emoções continuam sendo trens descarrilados…”. A escrita vai também descarrilada, entre sexo, especialmente masturbação, fantasias, introspecção e diálogos, humor e luto. E nós, leitores, vamos sendo levados sem saber para onde, uma surpresa a cada esquina.

A descoberta, no consultório da médica, de que tudo isso está acontecendo porque o estrogênio sumiu vem acompanhada de um espanto que traz a reboque uma certa humildade. Nesse momento da vida, por mais que ela se ache no controle, quem manda é a natureza. E a sensação de desamparo que isso causa na personagem é um dos pontos fortes do livro.

No consultório da ginecologista acontece um diálogo que é um clássico da negação pela qual passam as mulheres nessa fase:

– Insônia?

– Não… mas às vezes desperto às duas da manhã e não consigo mais dormir de novo.

– Com que frequência?

– Quase toda noite?

– E há quanto tempo?

– Um ano, dois?

Ao sair da consulta, busca sintomas da perimenopausa no celular e lê:

• insônia

• ressecamento

• depressão

• ansiedade

• dificuldade de concentração

• coração acelerado

• ganho de peso

• problemas de memória

• pele, boca e olhos ressecados

• aumento de micção

• redução de libido ou desejo sexual

• infecções no trato urinário

• perda de massa muscular

• dor ou rigidez na articulações

• seios doloridos ou sensíveis

• dor de cabeça

• perda de massa óssea

• frouxidão mamária

• queda de cabelo

• crescimento de pelos em outras áreas do corpo, como rosto, pescoço, tórax e parte superior da costas

Ela pensa: 

Fiquei súbita e oficialmente velha… De cara, a lista parecia uma doença terrível, possivelmente fatal, mas ao relê-la percebi que a maioria dos sintomas já me era familiar, que iam e vinham com certa regularidade.

Já estava tudo lá, na cara dela. Mas entender o significado disso é o que faremos, nós e a personagem, ao longo da história.

Quem escreveu esse texto

Branca Vianna

É fundadora da Rádio Novelo e apresentadora do Rádio Novelo Apresenta.

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