Desigualdades,

O lugar das diferenças

Análise de grandes e pequenas empresas e categorias profissionais ajuda a explicar as desigualdades sociais

26jul2023 | Edição #72

O tema das desigualdades de classe, gênero e raça está em alta. Uma pesquisa nos jornais mais importantes dos Estados Unidos mostrou um crescimento surpreendente do uso de termos como “patriarcado”, “racismo sistêmico” e “exploração” na imprensa nos últimos vinte anos. O debate prossegue e, no fim do ano passado, a opinião pública ficou chocada ao descobrir que a sua elite é povoada pelos “nepo babies” — aqueles artistas, empresários e políticos favorecidos pelas conexões de pais ricos e famosos.

No Brasil, o debate também mudou muito. No fim da década de 2000, muita tinta ainda era gasta para decidir se o país era ou não uma democracia racial. Gênero era um assunto tão invisível que as protagonistas dos movimentos de mulheres dos anos 70 achavam que o feminismo morreria com elas. Desde então, praticamente não se discute mais se há desigualdades, mas sim por que elas existem.

Quando certos fatos deixam de ser aceitos como naturais, as pessoas buscam explicações. Atualmente, as teorias mais populares sobre as desigualdades gravitam entre dois polos: o estrutural e o individual. No primeiro, há uma profusão de teorias que costuram racismo, patriarcado e capitalismo em grandes narrativas. No outro, estão explicações psicológicas que procuram as raízes das desigualdades e discriminações nas subjetividades.


Relational Inequalities: An Organizational Approach, de Donald Tomaskovic-Devey e Dustin Avent-Holt

Parece que o debate sobre as desigualdades acabou emparedado no dilema clássico da sociologia: a relação entre indivíduo e estrutura. Quase toda teoria social desde meados do século 20 se esforçou para superar essa divisão. Grosso modo, o entendimento é que teorias que dão muito peso a estruturas reduzem os indivíduos a fantoches, manipulados por forças obscuras e abstratas como o capitalismo, a cultura e o patriarcado, sem nenhuma capacidade de agir por conta própria.

Já as teorias que falam de indivíduos sem estruturas podem até dar algum crédito às suas ações, mas, quando tiram as pessoas dos contextos em que agem, a discussão fica um tanto arbitrária. Esse problema acomete algumas teorias sobre “masculinidade” ou “branquitude” que associam estruturas psicológicas ou até patologias a grupos inteiros de pessoas. Ao supor que a distribuição de recursos na sociedade reflete supostas essências individuais, elas acabam caindo em outro tipo de determinismo.

A análise deve partir das organizações, pois é nelas que indivíduos e estruturas se encontram

Por isso o livro Relational Inequalities: An Organizational Approach é tão interessante. Donald Tomaskovic-Devey e Dustin Avent-Holt apresentam um modelo prático e realista de entendimento das desigualdades, que procura escapar das abstrações e armadilhas da dicotomia indivíduo-estrutura ao olhar para a geração e reprodução de desigualdades em espaços concretos e observáveis: as organizações.

Tomaskovic-Devey pesquisa temas como gênero, raça, migração, sindicalismo e financeirização há duas décadas. Criou com Avent-Holt o modelo da “teoria das desigualdades relacionais” (RIT), que aprimora e amplia a teoria das desigualdades duráveis de Charles Tilly, um dos mais importantes sociólogos do século 21. Seu objetivo foi tornar a teoria de Tilly menos abstrata e mais empírica. Segundo eles, a análise deve partir das organizações, pois é nelas que indivíduos e estruturas se encontram. Nosso mundo está cheio delas: hospitais, colégios, empresas, indústrias e até famílias, igrejas e organizações ilegais.

Tomaskovic-Devey e Avent-Holt analisam bases de dados quantitativos sobre desigualdades entre patrões e empregados em empresas dos Estados Unidos, da Austrália, do Japão, da Suécia e da Alemanha e fazem meta-análise de estudos qualitativos em empresas desses e de outros países (como México, África do Sul e China).

Constelações

No lugar de totalidades imaginárias e fixas como “nações”, “culturas” ou “capitalismo”, surgem constelações de organizações inter-relacionadas, mas mutáveis e diferenciadas. Até “estrutura”, que costuma ser uma palavra assustadora, ganha um sentido mais simples: refere-se ao resultado de ações humanas passadas, que abrem ou fecham possibilidades no presente. Os indivíduos lidam com elas de formas diversas, gerando estabilidade ou mudança — e, assim, novas estruturas.

Por exemplo, ao aprovar uma lei que regulamenta salários e ocupações, o Estado fornece uma moldura às disputas dos trabalhadores nas organizações, mudando um aspecto da estrutura social. O mesmo vale para políticas de transferência de renda, que reduzem desigualdades no mercado e elevam o poder de barganha dos empregados. Desigualdades de gênero também variam se as instituições apoiam famílias e criam expectativas de mais igualdade. Sindicatos, movimentos sociais, empresários, associações e outros atores coletivos se envolvem ativamente na criação, sustentação ou mudança de estruturas.

Comparar países com contextos legais e institucionais distintos mostra como as estruturas importam, mas não anulam os indivíduos. Desigualdades extremas entre chefes e subordinados são muito mais comuns nos EUA do que na Austrália devido a diferenças no grau de proteção ao trabalho e à atividade sindical. Ainda assim, cada local de trabalho nos dois países tem seu próprio gap salarial de gênero, educação e afins. Isso mostra que os indivíduos dentro das organizações lutam e negociam localmente com estruturas, produzindo variações.

A RIT desafia formas habituais de interpretar desigualdades. O público já está familiarizado com pesquisas que mostram como certas características individuais como raça, gênero e escolaridade estão associadas a certo tipo de emprego ou salário. Essa abordagem vê o mercado de trabalho como uma hierarquia fixa dentro da qual as pessoas disputam posições. Para a RIT, esse modelo está longe de refletir como o mundo funciona de fato.

A estrutura de ocupações e o mercado são construídos por pessoas, que disputam o valor do que fazem e reivindicam proteções e recompensas. Algumas ocupações (médico, advogado, engenheiro) são bem pagas porque seus praticantes conseguiram persuadir o Estado a criar restrições ao seu exercício. Através de licenças ou outras exigências, a oferta de trabalhadores é reduzida, e o status e média salarial, elevados. O oposto acontece quando empregadores ou legisladores se empenham para derrubar credenciais e fronteiras que regulam o exercício de uma profissão.

Outras ocupações são mal remuneradas, como as atividades de cuidado. Exercidas geralmente por mulheres, são vistas como uma extensão do trabalho no lar e quem as desempenha costuma ter pouco poder de barganha. Ocupações podem ainda perder remuneração e status, o que frequentemente ocorre quando se tornam mais femininas. Gerente de banco, jornalista e terapeuta são profissões que se desvalorizaram depois da entrada de mulheres. Isso ajuda a explicar — embora não justifique — por que os médicos brasileiros tiveram uma reação tão negativa ao Mais Médicos. Eles perceberam a iniciativa como um ataque à sua remuneração e status e pressionaram o Estado para revogá-la.

Atitudes assim não são puramente racionais, mas envolvem emoções, solidariedade e honra grupal. A RIT explica as desigualdades começando pela classificação: a mente humana organiza o mundo complexo em categorias simples, tomando atalhos para reduzir o esforço cognitivo. Isso resulta em vieses e estereótipos, dando às pessoas a sensação de previsibilidade e estabilidade. Esse indivíduo é um amigo ou estranho? Homem ou mulher? Qual tipo de comportamento posso esperar dele? As classificações não estão dadas, mas são criadas nas relações e têm história. Brancos ou negros, nacionais ou migrantes, homens ou mulheres, cidadãos ou estrangeiros são dicotomias que fazem sentido em alguns contextos e não em outros.

Em posse de categorias, navegamos o mundo. Então, quando um conjunto de pessoas tem acesso a recursos em uma organização, sua tendência é cerrar fileiras para manter o controle sobre eles e excluir os “de fora”. Mudanças nas práticas e na cultura locais ameaçam o grupo mais poderoso, que teme a perda de posição. Esses processos envolvem estereótipos, preconceitos, emoções, mas não são resultado nem de estruturas deterministas nem de características mentais do grupo.

Por isso os resultados são variáveis: migrantes são bem-vindos em alguns locais de trabalho e rejeitados em outros, o gap salarial de raça ou gênero varia entre organizações, assim como variam as distâncias entre empregadores e empregados nas firmas. As organizações também respondem ao ambiente institucional mais amplo: dados quantitativos mostram o forte impacto positivo que o movimento pelos direitos civis e a legislação antidiscriminação tiveram sobre a composição racial do mercado de trabalho e sobre as diferenças salariais nos EUA.

Tomaskovic-Devey e Avent-Holt explicam que as pessoas estão sempre criando argumentos sobre por que merecem algum recurso mais do que os outros, tentando reservar oportunidades para seu grupo, e assim vão moldando as organizações e o próprio mundo econômico. Isso é verdadeiro tanto para trabalhadores como para empresários e executivos.

Castas empresariais

Os autores de Relational Inequalities lembram que as empresas que dominam o mercado têm mais chances de pagar melhores salários a seus funcionários do que as organizações com menos recursos. Nos últimos anos, empresas poderosas começaram a reduzir seus funcionários permanentes por meio da terceirização, da subcontratação e da substituição da produção doméstica por fornecedores de países pobres. O resultado foi a redução dos custos de produção, mas uma consequência não menos importante foi a exclusão das pessoas mais vulneráveis das organizações mais ricas e sua transferência para empresas menores e precárias. Na prática, os grandes executivos estão tirando dessas pessoas a possibilidade de brigar por salários e benefícios. Assim, eles conseguem reter a renda no interior de um grupo cada vez menor e mais homogêneo, o que tem aumentado vertiginosamente a renda no topo.

Para os autores, parte muito importante do aumento das desigualdades nos Estados Unidos e no mundo industrial e em desenvolvimento nas últimas décadas se deve às desigualdades crescentes entre as organizações. Grandes firmas de tecnologia, de serviços financeiros e a indústria farmacêutica usaram com sucesso seu poder político e de mercado para alterar legislações, patentear produtos e criar nichos protegidos e monopólios. O caso das cinco empresas de tecnologia Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft é emblemático: em suas curtas existências, elas produziram as fortunas de Bill Gates, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Page e Sergey Brin. Por terem partido na frente, hoje elas têm um acúmulo de dados sobre as populações sem paralelo, o que garante poder de mercado quase ilimitado e permite explorar fornecedores, consumidores e até organizações menores. Eles concluem o livro com uma crítica a Thomas Piketty: o autor de O capital no século 21 teria negligenciado o fato de que 0,1% da população mais rica detém propriedade ou controle de alguma empresa. Por isso, teria construído uma explicação demasiado abstrata para o aumento das desigualdades.

Algumas pontas soltas ficam pelo caminho, como a relação entre famílias e corporações

Relational Inequalities associa as desigualdades a processos observáveis e inteligíveis, oferecendo boas ferramentas para pesquisa e ideias para a formulação de políticas públicas. Como teoria, a RIT faz avanços ao focar nas organizações, trazendo mais carne às explicações sobre as desigualdades. Algumas pontas soltas ficam pelo caminho, como a relação entre famílias e organizações, um aspecto crucial das desigualdades de gênero.

Finalmente, a teoria das desigualdades duráveis de Charles Tilly proporcionava explicações mais propriamente relacionais para o que ocorre entre grupos sociais, frisando a importância das redes entre as pessoas, da coesão grupal e explicando melhor os processos de formação das oposições de gênero, raça, cidadania etc. Como o desenvolvimento da RIT é uma agenda dos autores para os próximos anos, podemos esperar mais avanços e refinamentos dessa que já é uma contribuição fundamental para a sociologia das desigualdades. 

Quem escreveu esse texto

Verônica Toste

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.