Desigualdades,
Defender a alegria, organizar a raiva
Com diagnósticos precisos sobre nossa desigualdade, Fabiana Moraes vê a produção de beleza de grupos subalternizados como resposta política
11dez2024A ideia de que é preciso ouvir vozes fora do Sudeste e de Brasília para compreender nosso país já é um tanto ultrapassada. A jornalista Fabiana Moraes sublinha essa necessidade jogando luz sobre o que deveria ser óbvio, mas não é. Conhecida por quem acompanha as discussões sobre direitos humanos, enfrentamento às desigualdades e subjetividade na cobertura jornalística, a pernambucana está lançando Ter medo de quê? Textos sobre luta e lantejoula, pela Arquipélago.
Nos textos já publicados em sites como Intercept Brasil e UOL e nas revistas piauí e Gama, a também professora da Universidade Federal de Pernambuco trata, entre outros temas, da escalada autoritária no Brasil dos últimos anos, da exigência de se olhar para a crescente comunidade evangélica de modo não estereotipado e da decadência da esquerda branca. Embora traga diagnósticos precisos e provocações sobre problemas objetivos que mais atingem nossa população, sobretudo a periférica, Fabiana defende a alegria e a beleza como estratégia de resistência. “Se a raiva nos faz caminhar, a fé na beleza deve igualmente nos mover”, diz no texto de apresentação.
Homenageada este ano no Congresso Internacional da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Fabiana Moraes conversou com a Quatro Cinco Um de sua casa no Recife, numa sala que tinha ao fundo uma lança do maracatu rural, que fez questão de frisar não ser apenas um item decorativo.
Você está lançando Ter medo de quê? Textos sobre luta e lantejoula. Pode explicar o porquê desse título?
Se tem uma coisa que a periferia nos ensina é que a maneira como temos dividido as coisas entre isso e aquilo, essa binariedade, não dá conta do mundo. Observando populações periféricas, cheguei ao maracatu rural, por exemplo, que nos ensina o que é luta e lantejoula. Eu entendo que a beleza é uma arma: a beleza do enfrentamento pela dança, pelo samba de Tia Ciata, o Cacique de Ramos, as músicas que escuto em altíssimo volume na casa de meu pai no Alto José Bonifácio [bairro do Recife] recebendo a família, dividindo o prato… O Brasil é uma vasta fábrica de luta e lantejoula, e a gente — bichas, pretos, indígenas — se distancia dessas coisas elementares procurando outras formas de ação. A produção da beleza é uma resposta, e a luta e lantejoula são isso como método.
Ter medo de quê? é também sobre acreditar numa sociedade menos desigual. Como equilibrar as estratégias de sobrevivência com a coragem de fazer um mundo diferente?
A gente não faz nada sozinho. Temos vivido um chamamento grande para uma perspectiva individual de ação que vem sendo escutado. Isso faz parte de uma tentativa de sobrevivência ao sofrimento.
Temos em grupos periféricos, indígenas, muitas das respostas políticas que buscamos
Ao mesmo tempo, a gente sabe que a resposta precisa ser coletiva. Você vai agir em conjunto porque às vezes vai ter que descansar e alguém vai ter que ficar girando essa roda. O maracatu ainda existe porque é coletivo. A gente tem em grupos periféricos, indígenas, muitas das respostas políticas que buscamos. Você está dentro do sofrimento mas consegue produzir a beleza e o gozo. Sem isso, não ficamos de pé.
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Em seus textos você defende com frequência a importância de uma democracia radical. Como seria?
Se a gente não radicalizar vai continuar ouvindo uma frase que escutei muito na pandemia e que mostra o tamanho do deslocamento de boa parte do campo progressista do que é o país em que a gente mora. Quando as pessoas diziam “a pandemia escancarou os grandes problemas do Brasil”, fiquei me perguntando em que país essas pessoas vivem. Se foi a pandemia que mostrou o tamanho da nossa desigualdade talvez isso explique muita coisa. Quando falo dessa democracia radical, tento tirar esse véu: a pandemia escancarou [problemas] para um público que estava muito protegido. Para quem a democracia nunca foi experimentada — quem estava dirigindo os ônibus, limpando as ruas, os terceirizados dos hospitais —, a pandemia não escancarou nada. Qual é a democracia que os motoristas de ônibus, grupo de profissionais que mais morreu, experimentaram?
E como a imprensa pode contribuir para essa democracia?
A imprensa comercial no país é de cunho liberal e neoliberal. A ideia de coletivo não faz parte de uma premissa ideológica, política. Ao mesmo tempo, no chão da fábrica do jornalismo, as linhas editoriais vão falar de assuntos como a fome, o desemprego, o racismo, que têm impacto social, e que na maioria das vezes só vão conseguir ser mitigados através de políticas públicas. É aí onde vejo a contradição da perspectiva de uma imprensa neoliberal que esbarra com muitas reportagens de veículos como Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo, como se não tivessem relação com o tipo de governo, partido, as decisões do Legislativo que impactam na pobreza. Como querem que “a fome chegue ao fim” quando ao mesmo tempo acham que o Bolsa Família é uma política de esmola? Como falar do desespero da fome e ao mesmo tempo minar esse tipo de política pública? A conta não fecha.
Que livros você considera essenciais para a formação de um bom repórter?
Uma série muito importante para quem faz jornalismo, mas não só, é a Casa de alvenaria, da Maria Carolina de Jesus, principalmente Santana (volume 2). O que ela escreve de como os jornais queriam domesticar aquela escritora tem a ver com tudo que estamos falando. Mesmo já distante da favela, o jornalismo só a considerava importante como favelada que virou escritora. É importante para a gente observar como se produz desumanidade em uma forma fixa de encarar a pobreza. Outros que recomendo são O jornalista e o assassino, da Janet Malcolm, Luanda, Lisboa, Paraíso, da Djaimilia Pereira de Almeida, O nascimento de Joicy, um livro meu que me deu muito drible e mostrou meu teto como jornalista, na absoluta urgência de sair de um lugar engessado para dar conta de outra subjetividade e, por último, dois do Victor Heringer: O amor dos homens avulsos e Vida desinteressante.