Desigualdades,

Reformar para redistribuir

Como o sistema tributário contribui para o aumento da desigualdade em um país que já está entre os mais desiguais do mundo

19abr2023 | Edição #69

Depois de quatro anos de autoritarismo e retrocessos institucionais, 2023 trouxe de volta a possibilidade de refletir sobre o futuro do Brasil sem o constante estado de alerta em relação ao presente. Somos conhecidos internacionalmente como o país do futuro, mas um futuro que nunca chega. Só que desta vez, mais do que nunca, é preciso não desperdiçar a oportunidade. Afinal, o risco de um retorno da extrema direita é alto demais.

Um dos principais esforços do novo governo neste primeiro ano é a aprovação da reforma tributária, fundamental para uma maior eficiência da economia brasileira ao lidar com a jabuticaba representada pelo atual desenho dos tributos indiretos. No modelo em vigor, prevalecem distorções e exceções que elevam custos administrativos, criam incentivos espúrios e sobreoneram o setor produtivo. Todavia, estamos também diante de uma grande oportunidade de caminhar em direção a esse “país do futuro” caso a reforma tributária enfrente um dos principais entraves para o nosso desenvolvimento: a desigualdade extrema.

No Brasil, o 1% mais rico concentra cerca de 30% de toda a renda gerada no país

O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo. Enquanto 36,7% das famílias brasileiras reportam algum grau de insegurança alimentar, o 1% mais rico concentra cerca de 30% de toda a renda gerada no país. Além disso, os rendimentos médios das famílias no topo chegam a superar os valores observados para os mesmos grupos em países ricos como a França. Podemos dizer que no Brasil coexistem dois continentes. De um lado, grande parcela da população é relegada à pobreza e à falta de oportunidades. De outro, um pequeno grupo mantém padrões de consumo similares aos dos mais ricos da Europa. 

Há evidências robustas na literatura econômica moderna de que a desigualdade afeta negativamente o crescimento econômico. Esse efeito perpassa diversos canais, como a maior instabilidade sociopolítica e a descrença nas instituições, o subinvestimento em capital humano — imagine quantos talentos são perdidos todos os anos — e o respaldo a organizações ineficientes do Estado. Nessa mesma linha, também há evidências recentes de que políticas redistributivas, que atenuam a desigualdade, levam a taxas de crescimento econômico maiores e mais sustentáveis no longo prazo.

Regressividade

Onde a reforma tributária se insere nessa discussão? Antes de uma resposta direta, vale olhar o passado recente para compreender como a política fiscal impactou a desigualdade nas últimas duas décadas. Em estudo recém-publicado pelo Ipea, “The Brazilian State’s Redistributive Role: Changes and Persistence at the Beginning of the 21st Century” (O papel redistributivo do Estado brasileiro: mudanças e persistência no início do século 21), mostramos que a maior persistência no período é a regressividade. 

Por um lado, os impostos diretos —por exemplo, Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), IPVA e IPTU — contribuem para uma pequena redução na desigualdade. O principal responsável por esse comportamento é o IRPF, já que quase 80% de sua arrecadação total provém dos 10% mais ricos, explicando sua elevada progressividade. Contudo, seu baixo peso sobre a renda das famílias contribui para a redução do potencial redistributivo. Por outro lado, os tradicionais impostos sobre a propriedade, como o IPTU e o IPVA, apresentam, respectivamente, um leve caráter progressivo e regressivo. Ao considerar que a desigualdade de riqueza tende a ser mais elevada que a de renda, a baixa progressividade — e até mesmo regressividade — desses impostos é, no mínimo, alarmante.

Já os impostos indiretos — que incluem tributos como o ICMS e o IPI — são altamente regressivos e contribuem para uma elevação significativa da desigualdade no país, um aumento no Gini de 3,9% em média durante o período. A razão por trás dessa regressividade pode ser compreendida de forma intuitiva. Enquanto as famílias mais pobres gastam quase a totalidade da sua renda em consumo, nas mais ricas há um espaço muito maior para a poupança. Como os impostos indiretos incidem majoritariamente sobre o consumo, são as famílias mais pobres que relativamente acabam pagando mais impostos.

Além disso, como os impostos indiretos correspondem a cerca de metade da carga tributária total, sua regressividade mais do que compensa a tímida progressividade dos diretos. No agregado, enquanto os 10% mais pobres da população contribuem com cerca de 26,6% de sua renda para o pagamento de tributos, para os 10% mais ricos esse percentual é de 19,5%. Ou seja, o sistema tributário contribui para um aumento na desigualdade em um país que já figura entre os mais desiguais do mundo.

São as famílias mais pobres que relativamente acabam pagando mais impostos

Apesar de o Brasil não ter se libertado das amarras de um sistema tributário regressivo, ocorreram importantes mudanças neste começo de século. No lado das transferências monetárias é possível observar ganhos de progressividade aliados a um aumento em sete pontos percentuais do peso desses benefícios na renda final das famílias. Desse modo, a partir de 2008 foi possível observar que o efeito progressivo das transferências monetárias passou a mais do que compensar a elevação da desigualdade gerada pelos tributos.

Aqui merecem destaque o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), este caracterizado como uma aposentadoria não contributiva destinada a idosos e pessoas com deficiência em situação de pobreza. Contudo, nas transferências há também um componente substancialmente regressivo: as pensões e aposentadorias do setor público (RPPS). Esses benefícios já sofreram mudanças nas últimas décadas, como a unificação dos regimes, a implementação de regras mais estritas e a instituição de uma idade mínima para a aposentadoria. No entanto, como essas novas regras se aplicam apenas aos novos entrantes no sistema, essas reformas geraram poucos efeitos por ora.

Aliada às transferências monetárias, a ampliação dos gastos públicos com saúde e educação também representou importante mudança. Quando comparados a todos os demais componentes da renda, esses gastos figuram como os mais progressivos e, por isso, foram responsáveis pelo maior impacto na redução da desigualdade nas últimas décadas. Ao longo dos anos, tanto a progressividade como a participação sobre a renda desses gastos cresceram. Enquanto a redução do índice de Gini depois da incidência desses benefícios foi de 11,7% em 2002, em 2018 essa queda foi de 16,6%.

Em síntese, a expansão e os ganhos de progressividade dos gastos sociais mais do que compensaram a persistência da regressividade tributária. Ainda assim, a concentração de renda no Brasil continua entre as maiores do mundo. Para retomar a trajetória rumo a um país mais justo e igualitário, o Brasil terá que se libertar desse sistema tributário regressivo no qual os mais ricos pagam proporcionalmente menos impostos que os 10% mais pobres. O desenho da futura reforma tributária é central nessa discussão.

Tratado assimétrico

Uma das principais mudanças necessárias é a reforma do Imposto de Renda. Apesar de contribuir para a redução da desigualdade, é possível observar um comportamento regressivo no topo da pirâmide, com o 1% mais rico contribuindo relativamente mais que o 0,1% mais rico. Essa regressividade se deve sobretudo às deduções de gastos em saúde e educação privada, bem como a isenções de lucros e dividendos no IRPF. Quando também considerado o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), fica claro que há um tratamento assimétrico em relação às diversas formas de rendimento do capital, já que as alíquotas sobre o lucro das empresas são, no geral, mais elevadas que aquelas sobre aplicações financeiras e ganhos de capital.

Para corrigir essas distorções é necessário extinguir isenções e deduções do irpf. Também traria ganhos de progressividade o incremento da alíquota marginal máxima desse tributo, hoje muito abaixo do que se vê em países da ocde ou vizinhos como Argentina, Chile e México, que têm alíquotas de 35%, ante 27,5% no Brasil. Além disso, visando corrigir assimetrias e o viés desfavorável aos ativos produtivos no país, é fundamental uniformizar as alíquotas aplicadas sobre os rendimentos do capital e alinhar as alíquotas na pessoa física e na jurídica.

Considerando que, no geral, a desigualdade de riqueza é substancialmente maior que a de renda, também se faz importante a implementação de um imposto sobre o patrimônio. Como simulado por Rodrigo Orair, um desenho semelhante ao adotado na Espanha, com limite de isenção de 700 mil euros e alíquotas progressivas entre 0,2% e 2,5%, afetaria apenas os 250 mil contribuintes mais ricos do país. Outra forma de majorar o impacto sobre a redução da desigualdade seria a conversão dos ganhos arrecadatórios provenientes dessas reformas em gastos progressivos, como em saúde e educação pública. Desse modo, seria possível criar um círculo virtuoso de redução das desigualdades e crescimento econômico no Brasil.

Quem escreveu esse texto

Theo Ribas Palomo

É economista e pesquisador do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da FEA-USP.

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.