Poesia,
Nem ácida nem melosa
Nos poemas de Eucanaã Ferraz, o maravilhamento é dosado pelos trancos e barrancos da existência
10out2023 | Edição #76“Raio”, poema que dá nome ao novo livro de Eucanaã Ferraz, diz muito da força propulsora de sua poesia, uma espécie de maravilhamento instantâneo que assalta e potencializa a existência. É como se o poema-título, escrito em prosa, desenvolvesse um haicai de Paulo Leminski, que diz: “tudo claro/ ainda não era o dia/ era apenas o raio”.
Só que, nesse caso, em vez da irônica economia do haicai leminskiano (“era apenas o raio”), estamos frente a frente com o excesso escancarado e assumido. O instantâneo de ilusão que faz com que a noite se confunda com o dia desencadeia uma torrente de visões alteradas pela descarga de luz, assaltando as formas do mundo que vibram de repente, eriçadas e patéticas no seu estado de emergência sem finalidade. Abre-se uma “claraboia repentina” sobre a noite tempestuosa, o deslumbramento ofuscante de um vitral estilhaçado em que se entrevê uma miríade de coisas grandes e mínimas, por uma fração de tempo que a treva logo engole.
Como se sabe, nenhum resumo é capaz de dizer um poema, inseparável de suas palavras próprias e do raio que ele mesmo risca. Mas o próprio poema sabe também que não é capaz de dizer o raio, ao concluir: “Se chegássemos a dizer uma só palavra no tempo do raio poderíamos ver as sílabas riscadas nítidas no espaço”. Não se trata pois, e na verdade, de uma descrição dos efeitos de um raio, mas de um relampejar de palavras em estado de descarga elétrica que imitam efeitos de uma palavra-raio impossível de se atingir (como aquela, talvez, de que fala o poema “Qual?”, palavra de feitio drummondiano que não se acha em parte alguma, nem em nenhum dicionário, mas que seria capaz de fulminar o mundo, se existisse). O fato é que o raio torna acesa a aparição das aparências, levando-as a um estado mágico em que se entrevê o mundo transfigurado e virado pelo avesso.
Sua poesia não abre mão do rescaldo de encantamento que se encontra nas formas nuas e desavisadas da vidas
É a esse maravilhamento instantâneo que eu me referia no início, quando falei da força propulsora de fundo que move a poesia de Eucanaã Ferraz. Ela se entrega, como os apaixonáveis incuráveis, aos raios da vida. “Poemas são relâmpagos a postos”, explicita, aliás, outra passagem do livro.
Na teoria estética, a experiência desbordante e inapreensível, maravilhosa e terrível, cujo impacto total é indomável, como a do raio, tem um nome — o sublime. Mas não é o caso de seguir à risca e em linha reta esse conceito ao se tentar situar a poesia de Eucanaã. O maravilhamento propulsor é dosado pela ironia humorada, pelos altos e baixos dos trancos e barrancos da existência, das limitações do todo dia ao rés do chão. Acresce ainda que muito da mais forte poesia contemporânea é cáustica, extraindo sua força do contato abrasivo e negativo com o mundo — poesia atravessada pela acidez do desencantamento, dotada de alguma violência mental que corresponda minimamente ao destrambelhamento atroz de tudo. E aqui está o ponto mais difícil de captar e definir: a poesia de Eucanaã Ferraz conhece o crivo de negatividade, que não lhe é estranho e que a informa, sem abrir mão daquele rescaldo de encantamento que se encontra nas formas nuas e desavisadas da vida. Nem ácida nem melosa, ela parece gozar o próprio balanceio interminável entre ilusão e desilusionamento que permeia as vivências.
“Desilusão ilusão”, por exemplo, é o nome de um entre seis poemas consecutivos, no livro, que tratam de relações interpessoais, compondo um leque gradual de paixões e encontros desencontrados. No primeiro deles (“Muito mais”), são os apaixonados (“altos”, “vastos”, “luminosos”, “ferozes” e “fundos”) que reinam “em meio a tudo”, diferentes dos demais mortais. No segundo, (”Graça você”), o amante converte o que seria o círculo vicioso das confusões conjugais num circuito virtuoso de trocas amorosas em que o eu se perde gozozamente na con/fusão com o outro. O terceiro (“O beijo”) remonta ao estado de inocência inicial de quando o espanto nem tinha nome, imune ainda à gramática moedora da experiência. “Truque” traz o momento difuso e crucial em que o estado de encantamento é abalado por alguma rachadura insondável que mora nos detalhes imperceptíveis da relação (“percebo que desapareci de você”). “Lições de economia” flagra o comércio labiríntico das transações sem termo que sustentam a complicada relação entre um e o outro eu. E em “Desilusão ilusão”, finalmente, experimenta-se o mal parado a dois, quando a marcha da inadequação surda se instala inapelável e desconjunta o espelho do par “à luz de um raio”. O raio está, portanto, no começo e no fim do processo, e os poemas podem ser lidos, de certa forma, como ambivalentes refrações dele.
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A reflexividade imaginosa e instigante, contida em detalhes concretos, guarda algo do primeiro Drummond, especialmente o de Alguma poesia. A vertigem do eu e do outro que se escapam a si mesmos lembra algo de Clarice Lispector, em poemas que parecem às vezes contos condensados. (Drummond e Clarice são dois escritores com os quais Eucanaã mantém também forte proximidade enquanto editor acurado de vários livros dele e curador de uma bela exposição sobre ela.) A afinidade com a poeta polonesa Wislawa Szymborska, em sua transfiguração do trivial feita com lances inusitados de engenho imaginativo, é também sensível.
Lar flutuante
“O xamã”, poema dedicado a Davi Kopenawa, me parece retórico demais para aquilo a que se destina (dizer isso dá mais verdade a tudo o mais que estou dizendo). “Na feira”, diálogo mudo de um passante fisgado pelo olho vivo de um peixe morto, é um dos grandes poemas deste e de outros livros de Eucanaã. Em “Copan”, o edifício sonhado como “princípio e fim de seu próprio delírio”, traçado “como um círculo […] em aço à roda de si mesmo”, puro objeto sem lugar, é uma anatomia ferina do fracasso do projeto moderno no Brasil, cuja onda utópica ainda reverberante vem bater no mar contemporâneo dos “barcos repletos de refugiados”.
O mal-estar no mundo se faz presente em Raio como um labirinto sem saída (“Hóspede”, “Estranho”, “Dédalo”), no qual continua sendo preciso inventar um impossível lar. Esse lar flutuante a poesia de Eucanaã continua a encontrar num lugar exato: a voz da mãe cantando “em voz limpa alta” a melodia “de uma canção/ triste que alegra tudo por onde passa” (“Exatidão”).
Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.