Crítica Literária,

Claro como água

Mirella Vieira Lima analisa com clareza e sem jargões cenas de amor de romances brasileiros

15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Machado de Assis, José Saramago, tudo bem: estudos não faltam. Mas os portugueses Aquilino Ribeiro (1885-1963) e José Cardoso Pires (1925-1998) não contam com o mesmo tipo de atenção por parte de críticos brasileiros — e não é pequeno o feito de Mirella Vieira Lima, professora de teoria literária na Universidade Federal da Bahia, analisando, num mesmo livro, trechos desses seis autores, reunidos a partir de um eixo comum.

Cenas de amor em romances do século 20 relaciona passagens clássicas — como a morte de Diadorim em Grande sertão: veredas ou o abraço exausto de Fabiano e Sinhá Vitória em Vidas secas — a páginas bem menos conhecidas, como o banho de mar da loira Lu em O homem que matou o diabo, de Aquilino Ribeiro.

É a presença da água, entendida na esteira de Gaston Bachelard (1882- 1964) como elemento simbólico e contraditório, o que permite os exercícios de comparação desenvolvidos pela autora. Imagens de pureza e contaminação, de placidez e tumulto, alternam-se conforme o impulso amoroso dos personagens estudados se resolve em harmonia ou separação, em fertilidade ou morte.

Não há nada de esquemático, entretanto, neste livro claro e bem organizado. Seus três capítulos aproximam os romances estudados conforme tratem de paixões extremas (Grande sertão: veredas e O homem que matou o diabo), de proximidades e distâncias conjugais (Vidas secas e O delfim, de Cardoso Pires) ou dos “incapazes de amar” (o Ricardo Reis de José Saramago e o Conselheiro Aires de Machado de Assis).

Incidindo mais sobre o conteúdo arquetípico do que sobre as particularidades estilísticas de cada trecho, a abordagem da autora se abre para muitas associações literárias e mitológicas, não raro surpreendentes.

Note-se, por exemplo, a aproximação entre a célebre descoberta final de Grande sertão: veredas com a morte de Clorinda, disfarçada de guerreiro, em Jerusalém libertada, de Torquato Tasso (1544-1595).

Numa “noite boa” — assim a qualifica o narrador de Memorial de Aires —, Tristão e Fidélia trocam olhares. “Sabiam tudo”, continua o texto. “Parece incrível como duas pessoas que não se viram nunca, ou só alguma vez de passagem e sem maior interesse, parece incrível como agora se conhecem textualmente e de cor. Conheciam-se integralmente.” Nessas frases de prosa despojada, rápida e precisa, Mirella Vieira Lima descobre uma alusão à “noite amável” que favorece, segundo o místico espanhol São João da Cruz (1542-1591), o acesso luminoso da alma cristã a uma verdade que sempre conheceu instintivamente.

A abordagem da autora se abre para muitas associações literárias e mitológicas, não raro surpreendentes

Em diálogo com a tradição da cultura europeia, como apresentada em especial por Denis de Rougemont (História do amor no Ocidente, 1939), Ernst Robert Curtius (Literatura europeia e Idade Média latina, 1948) e Joseph Campbell (O herói de mil faces, 1949), a autora não deixa de ressaltar o contexto social e histórico de cada obra estudada. A tarefa é certamente pouco problemática quando se trata de Vidas secas, mas exige muita argúcia e informação sobre a história portuguesa em O delfim.

Sem sombra de jargão acadêmico, Cenas de amor em romances do século 20 oferece bem mais do que faria pressupor o projeto de analisar poucas páginas selecionadas de seis escritores de língua portuguesa. Vieira Lima segue, em parte, o exemplo de Erich Auerbach nos fundamentais estudos de Mimesis (1946).

Faltaria ao livro, sem dúvida, voltar-se mais ao tom, à voz, à respiração de cada autor — do gota a gota de Machado de Assis aos alúvios de Guimarães Rosa —, para que penetrasse com ainda maior profundidade nesses textos, que de todo modo ganham aqui uma leitura imaginativa, clara e enriquecedora.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Coelho

Sociólogo e jornalista, é autor de Tempo medido (Publifolha) e Patópolis (Iluminuras).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.