Ensaio,

A idade da Serrote

Arte do ensaísmo é tema de antologia que celebra dez anos da revista do IMS com textos de Germán Arciniegas, Lukács e Lúcia Miguel Pereira

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Há muito que comemorar quando uma revista brasileira dedicada à publicação de ensaios completa dez anos. Editada pelo Instituto Moreira Salles, desde 2009 a Serrote tem apresentado, a cada quatro meses, textos de autores nacionais e estrangeiros de não ficção capazes de se incluir dentro dos limites reconhecidamente largos do gênero.

O que é um ensaio, afinal de contas? Ou melhor, o que podemos chamar de ensaio? Michel de Montaigne, no fim do século 16, assim chamou os textos que escrevia: oscilavam entre o comentário histórico, a reflexão moral, o livre comentário sobre qualquer assunto (literário ou não) e, sobretudo, o autorretrato, vazado num tom de conversa íntima e sem compromisso.

Ao longo dos anos, a Serrote tratou de atender a essa amplitude de temas e objetivos. Nas páginas da revista, podemos encontrar desde uma reflexão feminista sobre a boneca Barbie, escrita pela historiadora americana Jill Lepore, até um estudo do filósofo francês Jacques Rancière sobre Guimarães Rosa; um ensaio do argentino César Aira sobre a cafonice latino-americana; e as considerações da angolana Djaimilia Pereira de Almeida sobre a história de seus cabelos crespos.

De Cynthia Ozick a Starobinski

Celebrando os dez anos da publicação, Doze ensaios sobre o ensaio reúne ótimos textos, já publicados na revista, que se debruçam sobre a prática e a teoria do gênero. O melhor seria começar por um dos últimos ensaios do livro, o “Retrato do ensaio como corpo de mulher”, da americana Cynthia Ozick, que não sofre do aspecto expositivo e professoral adotado no texto que abre o volume, do suíço Jean Starobinski — reconhecido autor de estudos sobre Montaigne e Rousseau.

É muito útil, sem dúvida, que Starobinski nos esclareça sobre a etimologia do termo “ensaio”, que vem do latim “exagium” (balança), não afastando associações com “enxame” (de pensamentos), “exame” (de si mesmo ou de opiniões correntes), ou “experimento”. Tudo isso é muito interessante, mas Ozick talvez seja mais fiel ao espírito antiacadêmico do ensaísmo quando mergulha, sem preâmbulos, na prática de pensamento que se exerce (outra palavra parecida) quando o ensaísta escreve e o leitor lê. Ela cita o início de vários ensaios famosos. 

Em “Natureza”, Ralph Waldo Emerson (1803-82) diz que não encontra a verdadeira solidão quando está isolado em seu quarto — os livros lhe fazem companhia —, mas sim ao ar livre, contemplando as estrelas. Já William Hazlitt (1778-1830) diz mais ou menos o contrário: “Quando saio, a natureza já me basta como companhia. Nunca estou menos sozinho do que quando estou só comigo”.

O poder do ensaio, diz Cynthia Ozick, está em conseguir nosso assentimento

Com qual dos dois concordar? Com ambos, responde Cynthia Ozick. O poder do ensaio, diz ela, está em conseguir nosso assentimento. Mas não se trata de um artigo de doutrina, ou de um panfleto político. “O ensaio não se presta às barricadas”, diz ela; “é um passeio pela mente de alguém.” Pouco importa se o ensaísta está certo ou errado. “Durante o tempo que lhe dedicamos, seguramente nos rendemos e nos convertemos a ele”, continua a autora. E o que isso tem a ver com “o corpo feminino”? Eis outra magia do ensaio, que Ozick sabe reproduzir com muita arte: a de começar num ponto e terminar em outro completamente diferente, deixando-se levar pelo jogo das associações. Prefiro não estragar a surpresa do leitor adiantando a conclusão da autora.

Esse hábito dos ensaístas — de começar com uma coisa para terminar em outra bem distante — é destacado com muito engenho, mas de forma nem sempre persuasiva, em “O ensaio e seu tema”, do escritor César Aira. “No romance”, diz ele, “o tema se revela no final, como uma figura desenhada pelo que o autor escreveu […]. No ensaio, o tema vem antes, e é esse lugar que garante o tom literário do resultado.” A aparência de pouco esforço, de naturalidade, que é marca do bom ensaio, nasce para Aira do fato de que, ao começar a escrever, o ensaísta já deixou seu trabalho para trás — e pode assim “estabelecer certa distância com relação a sua matéria”.

No extremo oposto dessa liberdade — e dessa concepção “artística” do ensaio —, o livro organizado por Paulo Roberto Pires, editor da revista, reapresenta um longo recenseamento cronológico do que seria “O ensaio literário no Brasil”, originalmente escrito em 1962 pelo crítico Alexandre Eulalio (1932-88) e reeditado pela revista. Com exageros de minúcia, o autor menciona os escritos políticos de Tavares Bastos e de Frei Caneca, os sermões de Monte Alverne, os estudos filosóficos de Tobias Barreto, as publicações literárias do Primeiro e do Segundo Reinado e tudo o mais que sua insaciável erudição julgue conveniente incluir no panorama. 

É também um panorama, mas exposto com a força de uma das maiores personalidades críticas da literatura inglesa, o texto “Sobre os ensaístas de periódicos”, publicado por William Hazlitt há duzentos anos. Ele já podia contar com uma longa tradição de críticos de costumes e comentaristas gerais, como Richard Steele (1672-1729) — um autor que, diz Hazlitt, “com frequência me deixou de bom humor comigo mesmo e com as coisas que me cercavam” — e Samuel Johnson (1709-84), que não lhe provocava a mesma reação.

O levantamento de Hazlitt é atualizado, até os tempos de G.K. Chesterton (1874-1936), na elegante apreciação feita por Lúcia Miguel Pereira em “Os ensaístas ingleses”, antigo prefácio para uma antologia dos “Clássicos Jackson”, que ainda pode ser encontrada nos sebos e lida com proveito. Não faltam, nesse texto, observações algo previsíveis sobre a “inglesice” dos grandes ensaístas do século 19: para a autora, representariam o espírito sensato, realista e prudente daquele povo.

A ideia é posta de cabeça para baixo na brilhante, e nada prudente, contribuição do colombiano Germán Arciniegas, que vê na América Latina a origem do ensaio. Não foi, afinal, o choque com a descoberta do Novo Mundo e de seus habitantes que levou Montaigne à aventura de relativizar a própria civilização? Antes dele, já os textos de Colombo e Américo Vespúcio se abriam ao questionamento de tudo. Mas o ensaio, prossegue Arciniegas, adquiriu na América Latina uma missão mais “sociológica” do que pessoal. Sarmiento, na Argentina, e Ricardo Palma, no Peru, dedicaram-se a um ensaísmo que não tem muito a ver com o comentário despretensioso e íntimo, mas sim com a ambição de interpretar o próprio país.

Verdade e vida

É ainda mais ambicioso — alcançando resultados verdadeiramente geniais — o texto do filósofo húngaro György Lukács “A essência e a forma do ensaio”. Escrita em 1910, na fase pré-marxista do autor (e sob a forte influência de Georg Simmel), essa longa e exigente inquirição estética, que contrasta a ironia “ensaística” de Sócrates com a forma fechada da vida trágica, merece ser lida e relida. Cynthia Ozick e César Aira certamente se inspiraram nele.

Não foi, afinal, o choque com a descoberta do Novo Mundo e de seus habitantes que levou Montaigne à aventura de relativizar a própria civilização?

Dois ensaístas não podem se contradizer, observa Lukács — assim como dois retratistas podem criar, a partir do mesmo modelo, duas impressões diferentes de uma mesma pessoa. “É certo que o ensaio aspira à verdade”, diz o filósofo. “Porém, assim como Saul, que saiu em busca do asno de seu pai e encontrou um reino, o ensaísta capaz de buscar a verdade chegará, ao final de seu caminho, a algo a que não buscava: a vida.” Com menos sucesso, mas bons exemplos, o alemão Max Bense explora o mesmo campo.

Um ou outro problema de tradução (tract, panfleto, vira “trato”; e “atento” vira “atencioso”) não comprometem a altíssima qualidade desse livro. Nos dez anos de Serrote, a revista merece os parabéns.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Coelho

Sociólogo e jornalista, é autor de Tempo medido (Publifolha) e Patópolis (Iluminuras).

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.