Literatura,
Um romance para o nosso tempo
A montanha mágica, obra-prima de Thomas Mann, completa cem anos ainda profundamente actual e provocadora
20dez2024 • Atualizado em: 08jan2025Publicada há cem anos, A montanha mágica de Thomas Mann mantém-se profundamente actual em 2024. É uma obra do seu tempo, em que encontramos uma Europa confusa, atordoada por ambições e ódios mal-disfarçados. Uma Europa que, mal se despede dos horrores da Primeira Guerra Mundial, logo se precipita numa nova catástrofe. Mas é também uma obra para o nosso tempo. Pois também hoje a aceleração tecnológica, a radicalização política e o conflicto bélico se entrelaçam.
O romance, considerado por muitos leitores e críticos a obra-prima do escritor alemão, conta a história peculiar de Hans Castorp, um jovem engenheiro hamburguês, de ambições e talentos medianos, que decide visitar o primo tuberculoso num sanatório dos Alpes suíços em 1907. Com 23 anos, Castorp planeia uma estadia de apenas três semanas, mas, sucumbindo a uma febre súbita, acaba por ficar, como que enfeitiçado, por sete anos. Quando, finalmente, desce à planície, não o faz por iniciativa própria, mas por ser convocado para a guerra, onde desaparece no caos do campo de batalha.
Durante os anos que passa no sanatório, o jovem tem todo o tipo de experiências: apaixona-se por uma paciente, confronta-se com a morte, interroga-se sobre o tempo e estuda os mais diversos temas, da anatomia à história e à metafísica. Faz isso tanto sozinho, quanto sob a influência de acesas discussões entre Settembrini e Naphta, os dois principais interlocutores do protagonista no romance, que disputam a sua atenção. Por acompanhar este percurso existencial e intelectual, o romance foi caracterizado como um Bildungsroman, um “romance de formação”, na linha d’Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (1796), de Goethe. Com efeito, aquelas personagens, símbolos de um ingénuo ideal humanista (Settembrini) e de uma sinistra revolução reaccionária (Naphta), resumem as tensões ideológicas da época.
O romance rejeita as certezas do cético e do entusiasta, do reacionário e do progressista
Porém, as coisas não são assim tão lineares. O romance escapa ao esquema pedagógico e está longe de ser um elogio ao isolamento reflexivo na montanha. Desde o início, é evidente que o modo de vida do sanatório fomenta a apatia. Além disso, o próprio protagonista, apresentado com uma ironia constante pelo narrador, permanece profundamente imaturo. Afinal — poderíamos perguntar —, que valor tem a experiência alpina de Castorp? É a montanha um lugar de amadurecimento e reflexão? Ou é um pretexto para não agir, um subterfúgio para a indiferença, a desistência e a covardia?
O romance não responde a esta pergunta. E é precisamente nessa hesitação — mais do que nas reflexões sobre a doença, a morte ou o tempo — que reside a sua relevância filosófica. Ora, esta hesitação é testemunha das próprias inquietações do escritor que, ao longo dos doze anos que dedicou à escrita da obra, se interrogou profundamente sobre o papel do intelectual no seu tempo e atravessou uma profunda metamorfose. De certa forma, o romance teve não um, mas “três” autores.
Três autores
Em 1912, quando teve a ideia para uma novela passada nos Alpes, inspirado por uma estada de três semanas num sanatório em Davos para visitar a mulher, Katia Mann, o escritor vivia uma profunda crise existencial e criativa. Numa carta ao irmão, Heinrich Mann, descreveu Os Buddenbrook (1901) como “um livro burguês” que “já nada importa para o século 20”.
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Assim se compreende que, quando a guerra eclode em 1914, o escritor a acolha com entusiasmo. “Guerra! Purificação era o que sentíamos”, escreve noutra carta, como se o conflicto bélico dissipasse o torpor em que sentia a sua vida mergulhada. Nos anos seguintes, publicou vários ensaios, nos quais declarou o seu apoio à causa alemã, opôs cultura e civilização e ridicularizou posturas moderadas, como a do próprio irmão, com quem cortou relações por algum tempo.
Depois da guerra, com o rápido agravamento da paisagem política alemã, Mann, que entendeu cedo a insanidade crescente dos movimentos extremistas à direita e à esquerda, sofreu uma nova metamorfose. Em 1922, na conferência “Sobre a República Alemã”, para surpresa da audiência, declarou o seu apoio à República de Weimar, aproximando arte romântica e espírito democrático, dos quais Novalis e Whitman seriam os maiores representantes.
Recordar estas mudanças não é uma forma de acusar Mann de incoerência, muito menos de desvalorizar a sua militância antinazi nas décadas seguintes. Pelo contrário: que Mann, um escritor que tão abertamente se reconhecia conservador, que tão claramente abraçara a causa alemã, que tão rapidamente viu no Tratado de Versalhes uma humilhação, que esse mesmo escritor não tenha hesitado, quando da ascensão do nazismo, em demarcar-se radicalmente do regime — ao contrário de tantos outros intelectuais — é especialmente significativo.
Evoco, portanto, a metamorfose de Mann entre 1912 e 1924 para sublinhar que A montanha mágica exibe as cicatrizes de hesitações de um espírito inquieto perante as transformações do seu tempo. Estas transformações foram de natureza histórica e política, mas envolveram também profundas mutações tecnológicas, com implicações militares, médicas, psicológicas, culturais e artísticas. E aqui reside uma vertente menos conhecida do romance, que importa descobrir e iluminar.
Mundo em mudança
A montanha mágica não é apenas uma reflexão sobre o tempo, o amor e a morte. É também uma obra onde o encontro com novas tecnologias — em especial a radiografia, o gramofone, a fotografia e o cinema — desempenha um papel crucial. Estes encontros não estão à margem das experiências “fundamentais” de Castorp; pelo contrário, são o seu gatilho e o seu filtro.
O exemplo mais óbvio é o do confronto com a morte. Não é em debates filosóficos ou reflexões peripatéticas, mas ao reconhecer o próprio esqueleto numa radiografia que Castorp compreende, nas palavras do narrador, “que vai morrer”. Mais adiante, é graças a audições reiteradas e concentradas — que só o gramofone permite — da canção “A tília”, de Schubert, que o herói, meditando sobre a experiência do tempo, reelabora a sua “simpatia pela morte”.
Contudo, Mann está longe de ser um arauto da tecnologia. Nesse aspeto, distingue-se de artistas e intelectuais como Marinetti e Jünger, que exaltavam a união entre cultura e tecnologia associada à velocidade e ao poder das máquinas. Mann encarou com crescente preocupação as aplicações bélicas do progresso tecnológico. Nas últimas linhas do romance, descreve o obus como “produto de uma ciência degenerada, carregada com o que há de pior, como o demónio”. Ao mesmo tempo, manteve um espírito curioso e aberto às novidades do seu tempo, em especial aos usos artísticos da tecnologia. No romance, as profundas transformações da sensibilidade e da imaginação causadas pela tecnologia provocam tanto inquietações quanto entusiasmos, mas nunca sentenças definitivas.
Inquietações
É também esta atitude que torna A montanha mágica tão actual. Pois aquelas inquietações — sobre a memória, a doença, a espera, a morte e o amor, em tempos de mudança tecnológica e convulsões históricas e políticas — são ainda as nossas. O romance revela-as, explora-as e, nas suas entrelinhas, posiciona-se diante delas. Paulatinamente, rejeita as certezas do cético e do entusiasta, do reacionário e do progressista, do militante e do esteta. Esta dupla recusa é menos um meio termo do que uma atitude radical: a disposição para mudar de ideias, reconhecer erros e pensar melhor. Neste sentido, num tempo tão sedento de posições inequívocas e unilaterais como o nosso, A montanha mágica permanece uma obra não apenas profundamente actual mas também singularmente provocadora e intempestiva.
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