Ciências Sociais,

Rota de fuga

Dois novos livros alertam — e propõem saídas — para os perigos da exploração predatória capitalista

22mar2023 | Edição #68

Escrever sobre o tempo presente é sempre arriscado: a fluidez dos fatos e das tecnologias pode tornar as análises obsoletas, certas promessas de futuro podem se esvaziar abruptamente. Essa dinâmica pode ser observada em dois excelentes livros lançados recentemente no Brasil, Maneiras de ser, de James Bridle, e Terra arrasada, de Jonathan Crary — o primeiro um jornalista britânico que atua também como artista visual, o segundo um conhecido acadêmico ligado ao campo da história da arte.

Os subtítulos ajudam a localizar seus respectivos caminhos e interesses. Crary propõe uma reflexão “além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista”; Bridle, por sua vez, mobiliza “animais, plantas, máquinas: a busca por uma inteligência planetária”. A exposição de Crary é mais concisa, organizando o livro em três capítulos e mantendo as referências bibliográficas de forma bem comedida (ainda assim, faz falta um índice remissivo); Bridle é bem mais expansivo, com um livro de nove capítulos e mais de quatrocentas páginas, com muitos exemplos, notas e imagens.

Os dois autores partem da convicção de que, mantidas as atuais condições da exploração predatória capitalista, em pouco tempo já não haverá uma atmosfera planetária propícia à vida humana. Os encaminhamentos, no entanto, são bem diversos, uma vez que Crary dá um tom bastante pessimista ao seu relato, enquanto Bridle busca uma abordagem que privilegia a restauração e a sobrevivência. Pode ser instrutivo reter algumas cenas exemplares das duas visões. Bridle: “Nos litorais de Mianmar e do Brasil, botos selvagens mostram aos pescadores o melhor local para lançar as redes, depois guiam os peixes até elas e ganham uma cota da pescaria”. Crary: “No Peru, uma companhia chinesa se dedica a um processo de décadas que tem como objetivo literalmente desmontar o monte Toromocho, de 4.500 metros de altitude, a fim de recuperar vários bilhões de toneladas de minérios”.

A ênfase de Bridle está na descrição de possibilidades de convivência entre humanos e máquinas

Os dois livros são, até certo ponto, continuações de trabalhos anteriores. No caso de Bridle, Maneiras de ser retoma elementos de A nova idade das trevas, livro de 2018 que lida com “a tecnologia e o fim do futuro”. A ênfase agora está na descrição de possibilidades de convivência entre humanos e máquinas, expandindo essa “harmonia” em direção a planos de convivência sadia com outras espécies, coisas e seres -— “animais também atuam politicamente entre si”, escreve ele, “eles se associam, forjam alianças, brigam, votam e tomam decisões”. As novas “maneiras de ser” propostas por Bridle envolvem mudanças de perspectivas, abordagens e visões, como aquela que diz respeito a nossa tendência a “desmontar as coisas”, algo que vem em grande medida da “prática científica”. Isso, contudo, é o contrário da ecologia, “que busca achar conexões entre todas as coisas” e convertê-las em sistemas maiores e interconectados. Precisamos trocar o microscópico pelo macroscópico, conclui Bridle, para aprender a experimentar o mundo dentro de uma nova escala, para além de uma noção convencional do “humano”.

No caso de Crary, Terra arrasada, como ele próprio indica no prefácio, é uma continuação de 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, lançado originalmente em 2013. Na obra anterior, Crary examina as consequências de “padrões ininterruptos e permanentemente ativados” de consumo, extração, combustão, produção e militarização; o resultado desse estado de coisas, como ele argumenta na obra mais recente, é uma “terra arrasada” em que a sociedade civil e os ecossistemas “erodem lado a lado”. É possível ainda traçar linhas de contato com o célebre livro de Crary de 1999, Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna, dedicado a uma ampla análise da “experiência estética” na era do capitalismo industrial. A evocação é pertinente porque Terra arrasada é, em grande medida, uma problematização dos regimes de percepção impostos aos indivíduos na contemporaneidade — ao menos aqueles que passam boa parte de seus dias (e de suas vidas) diante das telas, dos aplicativos e dos dispositivos.

O dilema das telas

Segundo Crary, a internet impõe aos seres humanos um ritmo de atenção inteiramente alheio a suas capacidades fisiológicas. Um dos resultados dessa discrepância é a peculiar combinação de angústia, pressa e vazio que experimentam todos que têm algum tipo de familiaridade com as “redes”. O “complexo internético” tem como objetivo a dissolução dos laços sociais e da possibilidade de reunião, contestação e organização: “Dia após dia”, escreve Crary, “muitas pessoas sentem de forma visceral o empobrecimento de suas vidas e esperanças, mas têm apenas uma consciência hesitante sobre quanto essas percepções são compartilhadas com os outros”. Não há uso criativo ou saudável possível das redes, dos aplicativos, das telas e dos dispositivos; o único horizonte disponível é aquele de um embrutecimento generalizado da cognição, da afetividade e da solidariedade. Essa “terra arrasada” dos afetos tem uma contrapartida facilmente visível no mundo real: os bilionários estão cada dia mais ricos e confortáveis, enquanto a parcela dos desesperados só faz aumentar.

É preciso insistir em uma vida material e afetiva fora do “complexo internético”, antes que isso se torne impossível — ou irrelevante ou, ainda, obsoleto, como as fichas de orelhões. “Outros mundos não apenas são possíveis”, escreve Bridle, “eles já estão presentes”: reconhecer que “as plantas, animais e outros não humanos” têm seus próprios mundos é o primeiro passo “para deter o excepcionalismo e o supremacismo humanos”. É preciso abrir espaço — nos discursos, na imaginação, nas artes — para eventos como a audição das plantas e sua capacidade de lembrar; a periodicidade do aparecimento das folhas de carvalho; a funcionalidade de certas bactérias que evoluíram para gerar energia a partir de metano, enxofre e hidrogênio; as lições de sobrevivência do abacate, que manteve sua presença na Terra mesmo depois da extinção de alguns de seus “parceiros simbióticos”, como os elefantes do Plioceno e as preguiças-gigantes, únicos animais capazes de engolir sua grande semente.

A quantidade de exemplos amealhada por Bridle ao longo de seu livro é impressionante. Ele parte do uso que fez John Cage da aleatorização, com sua mobilização do I Ching e de computadores na Universidade de Illinois, até chegar a pesquisas recentes sobre mutação genética, para além do paradigma estabelecido por Darwin. “Não espanta que vivamos recorrendo a instrumentos geradores de acaso — dados, cartas, roletas, astrologia e o I Ching”, escreve Bridle, “para poder abrir a válvula de escape, sair de dentro da nossa própria cabeça e talvez gerar narrativas alternativas a um mundo estéril”.

Adiante, resgata os casos recorrentes de orangotangos em cativeiro que levam a cabo complexos planos de fuga, chegando, por fim, a uma reflexão sobre as ideias de “apoio mútuo” do anarquista russo Piotr Kropótkin, as ideias de cooperação entre abelhas do etólogo austríaco Karl von Frisch e as ideias semelhantes acerca das colônias de formigas do cientista cognitivo estadunidense Douglas Hofstadter. “Ao que tudo indica”, conclui Bridle, “as abelhas, assim como o bolor limoso e as redes micorrízicas, já estão desempenhando o tipo de trabalho que lutamos para realizar com nossas tecnologias. Temos muito a aprender com eles”.

Para Crary, é a própria noção de “aprendizado” que está em jogo, já que o “complexo internético” tem cooptado indivíduos — e se apresentado como a única dimensão válida da vida — desde a mais tenra infância. A meta consiste em vetar à juventude o acesso até mesmo “às circunstâncias em que seja possível imaginar e construir um futuro”; no lugar disso, há uma fonte inesgotável de notícias sobre jovens que fazem usos “criativos” e “disruptivos” de ferramentas e plataformas digitais. “Rotas para um mundo diferente não serão encontradas nas ferramentas de busca da internet”, escreve Crary, e completa: “Eis uma verdade irrefutável: não existem sujeitos revolucionários nas redes sociais”. Nossas crianças, com suas aulas de robótica e seus dedinhos delicados deslizando pelas telas, não são os membros privilegiados de uma vanguarda que nos levará a um futuro surpreendente, mas as principais vítimas da reiteração de um velho sistema de subjugação dos afetos e das diferenças.

Estratégias

Em Terra arrasada, encontramos algumas indicações do que precisa ser feito. Em primeiro lugar, uma “reformulação radical de nossas vidas” e “uma recusa dos produtos e serviços que levam ao crescimento e ao enriqueci-
mento de megacorporações”. Do outro lado, as estratégias são claras: manter as pessoas contidas nos limites das “irrealidades aumentadas” do “complexo internético”, dentro dos quais a experiência é fragmentada em um “caleidoscópio de reivindicações de importâncias fugazes”.

‘Eis uma verdade irrefutável: não existem sujeitos revolucionários nas redes sociais’, escreve Crary

Em Maneiras de ser, Bridle acessa em alguns momentos o nível pessoal para relatar pequenas rotinas que tornam prática a tarefa de acessar a “inteligência planetária”. Ele fala, por exemplo, de seus exercícios com a fotografia em time-lapse, acompanhando as transformações infinitesimais em samambaias, lírios, fícus e filodendros. Essa redução do ritmo de observação acarreta uma transformação na escala da nossa atenção e percepção como espécie — algo que pode ser lido em conjunto com as admoestações de Crary acerca da velocidade doentia do complexo internético. Não basta trocar a velocidade da máquina pela velocidade do humano, é preciso ir além.

Crary oferece um destino possível: a caverna de Chauvet, no sul da França, descoberta em 1994, com “imagens de 30 mil anos atrás que afirmam uma humanidade que somente pode florescer se aceitar sua inseparabilidade do mundo da vida animal e não humano”. Trata-se de uma “recuperação profética” de certa beleza arcaica, que ocorre em um “momento de perigo extremo”, uma época — a nossa — que parece refratária a qualquer crítica ou pedido de socorro, ensimesmada em suas fantasias de seguidores e engajamento.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.