Jornalismo,
A peste digital
Em livro de estreia que se tornou best-seller, repórter da ‘New Yorker’ afirma que a internet mais aliena do que aproxima
01jun2020 | Edição #34 jun.2020O indivíduo se tornou o último recurso natural do capitalismo. É o que alega Jia Tolentino em seu livro de estreia. Para a jornalista, vivemos em um ecossistema que monetiza o eu — algo que pode ser observado especialmente na internet, órgão central da vida contemporânea, que nos convida a vender versões “envernizadas” de nós mesmos enquanto enriquecemos algumas poucas empresas com modelos de negócio questionáveis. Em Falso espelho: reflexões sobre a autoilusão, a repórter millennial prodígio da New Yorker propõe indagações — a que não necessariamente responde — sobre como as pessoas, sobretudo de sua geração, têm lidado com os becos escuros da internet e do chamado capitalismo tardio.
Apesar de apreciar as possibilidades de conexão que a internet oferece, tanto mais em tempos de pandemia, ela ressalta, em entrevista concedida por e-mail à Quatro Cinco Um, os problemas da vida em rede hoje: “Em quarentena, acho que é ainda mais óbvio que a internet tende a um volume de informações simultâneas confusas que nosso cérebro não é feito para manipular por longos períodos de tempo; que ela mistura o banal e o urgente de maneiras realmente confusas; e que ela nos conecta de maneiras que nunca podem substituir o tipo de comunidade, apoio, amizade e amor que buscamos na vida real”.
No livro, em nove ensaios inéditos, Tolentino expõe o desafio de o ser humano enxergar a si próprio em um mundo assolado pela hiperexposição. Ela também joga luz na ilusão de não cumplicidade com uma economia global disparatadamente injusta. “Muitas vezes senti que a escolha de nossa era se dava entre sermos destruídos ou nos comprometermos moralmente a fim de continuarmos funcionais — naufragar ou continuar funcional por razões que contribuem com o naufrágio”, escreve. A jornalista conta que foram necessários sete anos “açoitando meu eu na internet” para que chegasse à posição de se dar ao luxo de não usar a Amazon para economizar “quinze minutos e cinco dólares por compra”.
Seguindo esse pensamento em tempos de confinamento, podemos nos questionar, por exemplo, sobre o verdadeiro preço dos serviços oferecidos por empresas de aplicativo que normalizam um paradigma segundo o qual são seus entregadores — cuja mão de obra é claramente explorada — que assumem as responsabilidades e os riscos. E podemos, é claro, boicotá-las. Mas até que ponto alguém consegue realmente deixar de ser uma engrenagem do capitalismo hoje?
‘Senti que a escolha de nossa era se dava entre naufragar ou continuar funcional por razões que contribuem com o naufrágio’
Embora não tenha a pretensão de ser a voz de uma geração, aos 32 anos, Tolentino é uma representante modelo: canadense criada no Texas, filha de imigrantes filipinos, foi cheerleader, participou de um reality show adolescente em uma praia em Porto Rico e integrou uma sororidade feminina nos tempos de faculdade na Virgínia, onde se formou na esteira de uma recessão econômica — essas experiências aparecem como pensatas sagazes em Falso espelho. Além disso, é claro, deve à internet grande parte de sua formação pessoal e profissional.
Antes de alavancar a audiência da New Yorker com textos espirituosos sobre assuntos como folk rock, cigarros eletrônicos e por que as pessoas tratam seus cachorros como gente, trabalhou como editora dos sites Jezebel e Hairpin, voltados ao público feminino, e colaborou para veículos como The New York Times Magazine, Grantland (finado blog da ESPN) e Pitchfork (portal dedicado ao universo musical). Seu trabalho é fortemente marcado pela experiência digital, na qual para prosperar é preciso ser ágil, perspicaz e persuasivo. E estar disposto a se expor.
Fantasia narcisista
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Uma garota de dezesseis anos não corre de biquíni e rabo de cavalo na televisão a menos que queira desesperadamente ser vista. A conclusão é da própria Tolentino, participante do programa de televisão adolescente Girls vs. Boys: Puerto Rico em 2004, quando, segundo ela, reality shows ainda tinham caráter experimental e não haviam consumido grande parte de nossa vida social e política. A experiência é relatada em um dos ensaios como uma “fantasia narcisista transformada em realidade” que acarretou, a longo prazo, a compreensão de que a impressão que deixa nos outros é algo que a autora não pode controlar, mas que, mesmo assim, tenta fazê-lo inconscientemente. “O processo de calibrar meu eu externo se tornou tão instintivo e tão automático a ponto de eu não percebê-lo mais. Foi uma preparação útil, embora duvidosa, para uma vida mergulhada na internet”, escreve ela.
Além de alimentar a crueldade social e elevar nosso senso de autoimportância — dando-nos a sensação de que todos merecemos nossas próprias montagens cuidadosas com trilha sonora enquanto andamos pela rua —, os reality shows, segundo a autora nos conta em entrevista (e a exemplo da última edição brasileira de Big Brother), espelham o antagonismo da sociedade atual. “Para simplificar bastante a polarização que está acontecendo em todo o mundo, é apresentada uma escolha entre, à direita, priorizar o lucro individual e, à esquerda, priorizar a sobrevivência coletiva; entre estreitar e expandir continuamente nossa zona de proteção; entre maior concorrência e maior cooperação.”
Versada em assuntos políticos, ela dedica uma seção do ensaio “A história de uma geração em sete golpes” à eleição de Donald Trump em 2016, que considera “o golpe final e definitivo para a geração millennial” e “uma incontestável e humilhante prova de que a fraude vem a ser o éthos americano por excelência”. Segundo Tolentino, não importa que o presidente norte-americano não cumpra suas promessas, ele vai continuar representando o ideal de poder desde que seja “homem, rico, branco, agressivo e fanático”. Soa familiar?
Outra espécie de golpe analisado em Falso espelho é o da indústria de beleza, que pegou carona no feminismo contemporâneo ao defender a “beleza real”, mas, ao mesmo tempo, estabeleceu padrões ainda mais inatingíveis para as mulheres. O visual almejado hoje é o que parece não exigir esforço algum, mas, por trás dele, há todo um arsenal de procedimentos, como eliminação de linhas de expressão, alongamento de cílios e preenchimento de lábios. O inorgânico foi manipulado para passar uma imagem de espontaneidade, e antigas exigências irrealistas, em vez de descartadas, foram rebatizadas. “O esforço para ficar bonita é rotulado como self-care para que, assim, soe progressivo”, escreve a autora de Falso espelho.
Assim, a mulher ideal passou a habitar um estrato de sucos caros, academias de luxo e cuidados com a pele (que ganharam status de ritual espiritual), de modo que não estamos mais lidando com um mito de beleza, mas de estilo de vida. Em entrevista, Tolentino chama atenção para a linha tênue entre feminismo como política e feminismo como marketing: “Eu acho que o ideal de beleza de fato se diversificou, o que de um lado é realmente muito bom, mas, de outro, meio inútil: que tipo de liberdade é essa de todos poderem ser bonitos se todos ainda devem ser bonitos? Isso é talvez até mais punitivo do que os dogmas passados de ideal, porque agora a linguagem do feminismo está misturada a isso tudo”.
‘Parei de acreditar em Deus quando tomei ecstasy. Sempre achei religião e drogas atraentes por motivos parecidos’
Segundo ela, em uma época de poder feminino sem precedentes, em vez de igualdade de salários, direitos sobre o corpo e creches subsidiadas, temos “uma cornucópia sem fundo de não soluções privatizadas: sérum facial, saunas infravermelhas e gurus de bem-estar como Gwyneth Paltrow, famosa por sugerir que se colocassem ovos de pedra dentro da vagina”. Tolentino é particularmente prazerosa de ler quando se lança a críticas bem-humoradas de coisas aparentemente banais, como aulas de barré (método que combina balé, funcional e pilates, “uma atividade maníaca e ritualizada”) ou saladas picadas: “O cliente ideal das saladas picadas é muito eficiente: precisa comer sua salada de doze dólares em dez minutos porque necessita do tempo extra para continuar operando em um emprego que lhe permite comprar uma salada de doze dólares. […] Nos termos de hoje, uma sessão mecanicamente eficiente de ingestão de saladas, conduzida de forma que o sujeito não precise parar de olhar seus e-mails, é a definição de vida boa”.
Deus e drogas
Há ensaios menos inspirados no livro, como um em que critica a indústria de casamentos e outro em que discute a subjugação das heroínas literárias, mas mesmo deles pode-se tirar bons conceitos. Talvez Tolentino escreva bem pois muitas vezes tem a si mesma como objeto — uma millennial bonita, inteligente, bem-sucedida e também desiludida, que sofre nas aulas de barré e come saladas picadas de doze dólares. O fato de ser uma leitora voraz, é claro, também ajuda na escrita. À Quatro Cinco Um, ela diz que passou o início da quarentena lendo a trilogia Wolf Hall (Record), de Hilary Mantel, e acaba de devorar o novo livro de Elena Ferrante, A vida mentirosa dos adultos (com lançamento no Brasil previsto para setembro, pela editora Intrínseca).
Ao longo de Falso espelho, as citações a outros escritores são frequentes, sobretudo de pensadoras do feminismo, como Simone de Beauvoir, Adriana Cavarero, Donna Haraway, Betty Friedan, Rebecca Solnit, Simone Weil e Naomi Wolf (vale uma olhada atenta ao índex de leituras de apoio, de seis páginas, ao final do livro). Porém, não raro é a própria Tolentino quem cunha máximas dignas de nota. Foi sob o efeito de drogas que surgiu uma delas. “Estava escuro e era tarde. Eu estava sentada em uma mesa pequena perto da janela, anotando algumas ideias sobre — ou assim eu escrevi, com a típica empolgação de alguém chapado — a exigência e a impossibilidade de uma pessoa conhecer a si mesma sob as condições artificiais da vida contemporânea”, escreve no ensaio “Êxtase”.
Criada em uma megaigreja evangélica em Houston, dentro de cujas instalações ficava sua escola, teve uma infância feliz, mas não tardou para que se desiludisse com as instituições religiosas. A virada decisiva se deu na ocasião de sua primeira experiência com drogas psicoativas. “Parei de acreditar em Deus na primeira vez em que tomei ecstasy. Sempre achei a religião e as drogas atraentes por motivos parecidos. Ambas oferecem um caminho para a transcendência — uma maneira de acessar um mundo extra-humano de euforia e perdão que, nos dois casos, é tão real quanto parece”, escreve. “O fato de que eu via Deus em tudo ao meu redor garantiu que eu não continuaria sendo cristã. Nunca achei a Igreja muito mais virtuosa do que as drogas, e nunca achei as drogas muito mais pecaminosas do que a Igreja.”
Ao falar de suas experiências com ecstasy, maconha, cogumelos e ácido, a autora acaba politizando o assunto, dando a entender que a autoilusão que o uso dessas substâncias provoca é positiva e produtiva, do tipo que nos leva a ter revelações transcendentais e a expandir nosso entendimento do coletivo. “Sem dúvida eu acesso grande parte da minha conexão fundamental com a alegria, a clareza, o enraizamento, a gratidão e a liberdade por meio de experiências ocasionais com drogas, e espero que a pesquisa médica sobre usos terapêuticos de psicodélicos e mdma avance”, diz ela à nossa reportagem. “Espero que, uma vez que todos nos acostumemos a estar perto de outras pessoas de novo, muitos aproveitem a ocasião para ir a um lugar bonito com os amigos e usar uma quantidade responsável de drogas, ouvir música, dançar, fazer uma bela refeição e saborear o prazer de estar na companhia uns dos outros.”
Ser e parecer
Dos nove ensaios de Falso espelho, é o primeiro que se destaca. Com um começo quase bíblico — “No início, a internet parecia uma coisa boa” —, o texto examina como plataformas que haviam prometido conexão começaram a provocar alienação em massa. A autora propõe cinco problemas-chave em torno da internet: ela é construída para distorcer nosso senso de identidade, encoraja-nos a supervalorizar nossas opiniões, maximiza nosso senso de oposição, degrada nossa compreensão de solidariedade e destrói nossa noção de escala.
Prova disso, segundo ela, é que as páginas políticas com mais visualizações no Facebook são as que têm uma constante postura de oposição e agressividade. Afinal, o conflito sempre atrai um número maior de pessoas — e estimular respostas emocionais é financeiramente recompensador para as empresas. Em dado momento, ela liga a ascensão de Trump à necessidade das redes sociais de irritarem seus usuários para prosperar.
“Noso mundo simplifica as discussões sobre moralidade, mas dificulta muito a verdadeira vida moral”, escreve Tolentino, defendendo que a ideia de as redes sociais mostrarem às pessoas apenas aquilo em que estavam interessadas resultou, em uma década, no fim da realidade cívica compartilhada. Ela também critica o fato de a internet minimizar a necessidade de ação significativa, alegando que, para viver uma vida aceitável no século 21, “basta sentar-se diante de uma tela”. Para a repórter, a internet funciona como um substituto barato para nos envolvermos politicamente com nossa comunidade. Com isso, emitir uma opinião deixou de ser o primeiro passo em relação a uma mudança e passou a ser um fim em si mesmo. Enquanto a internet aumentou drasticamente nossa capacidade de saber sobre as coisas, nossa capacidade de mudá-las estagnou.
Do mesmo modo, a diferença entre vivenciar e registrar/compartilhar — pense, por exemplo, na experiência de apreciar um pôr do sol em oposição ao ato de comunicar que se está apreciando um pôr do sol — é essencialmente a diferença entre ser e parecer. As piores coisas da vida online passaram a moldar, e não mais refletir, as piores coisas da vida offline. Ficamos tão presos às nossas versões virtuais que deixamos de priorizar a realidade — e o verniz da representação tornou-se difícil de remover.
A autora examina como plataformas que haviam prometido conexão começaram a provocar, ao invés disso, alienação em massa
A pergunta que fica como um retrogosto amargo ao fim da leitura é: há solução possível, ou estamos diante de um beco sem saída? Tolentino tem lucidez e perspicácia de sobra para diagnosticar os males modernos, mas não oferece soluções além de “o colapso social e econômico, ou talvez uma série de casos antitruste acompanhados por um pacote de rígida legislação regulatória”. Em alguns momentos, a sensação é de renúncia por parte da jornalista, para quem “os caminhos mais honestos se estreitam ou se revelam sem saída” e “há cada vez menos opções para que uma pessoa sobreviva nesse ecossistema de maneira totalmente defensável”.
Quando indagada sobre sua leitura do momento atual, Tolentino responde que a era do coronavírus iluminou os limites e perigos do capitalismo e do individualismo quando levados a extremos, e diz que a pior autoilusão atualmente é a de que “nosso propósito como seres humanos é ter uma vida tão feliz e confortável quanto possível, e que podemos e devemos chegar lá colocando nossos próprios interesses acima de tudo”. Ao fim da entrevista, no entanto, faz questão de apresentar uma visão menos paralisante do futuro. “Tenho esperança de que saiamos disso com uma compreensão muito mais visceral de que a sobrevivência, o bem-estar e a felicidade coletivos são a base da sobrevivência, do bem-estar e da felicidade individuais. Ninguém pode viver confortavelmente enquanto o resto do mundo pega fogo, mesmo que ache que pode — há uma podridão que se instala na alma.”
Em um de seus momentos mais impetuosos, Tolentino se refere à internet como um “febril, elétrico e inabitável inferno”. Seu livro é um bom ponto de partida para, caso você ainda não o tenha feito, começar a pensar em modos de sair desse inferno. Ainda que não ofereçam uma saída clara, os ensaios podem servir de bússola.
Nota do editor
Leia a entrevista completa com Jia Tolentino em nosso site: quatrocincoum.com.br
Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.
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