Ciências Sociais, Trechos,

Retratos da branquitude

Em novo livro, Lilia Moritz Schwarcz vai de imagens do século 16 às peças publicitárias atuais para refletir sobre a construção de uma hegemonia branca (e racista) no Brasil; leia trecho

23ago2024 • Atualizado em: 26ago2024
Chichico Alkmim, Retrato de família, c. 1910. (Instituto Moreira Salles/Divulgação)

Historiadora, antropóloga, imortal da Academia Brasileira de Letras e branca, Lilia Moritz Schwarcz coloca a branquitude no espelho ao analisar suas manifestações na cultura brasileira em representações na arte, na mídia e na história em Imagens da branquitude: a presença da ausência, que chega nesta semana às livrarias pela Companhia das Letras.

Vencedora do Jabuti e autora de Brasil: uma biografia (Companhia das Letras, 2015) e do infantojuvenil Óculos de cor: ver e não enxergar (Companhia das Letrinhas, 2022), a professora titular da Universidade de São Paulo (USP) explora como o conceito da branquitude foi historicamente associado ao poder e à ideia de padrão neutro na sociedade.

Para examinar essa construção da identidade racial branca no Brasil, Schwarcz mergulha em manifestações iconográficas datadas desde o século 16 até hoje — como fotografias, peças publicitárias e outros materiais imagéticos — e conduz minuciosamente o leitor por elementos racistas naturalizados ao longo do tempo em registros visuais.

“Branquitude corresponde a um sistema internalizado de privilégios materiais e simbólicos que se ancora no passado mas exerce suas prerrogativas no presente. Tem como consequência social a manutenção de monopólios sociais e a perpetuação do poder”, diz uma passagem do livro. Leia um trecho a seguir.

Trecho de Imagens da branquitude: a presença da ausência

No Brasil, boa parte da sociedade branca costuma naturalizar o monopólio dos espaços de poder: detém empregos disputados, ocupa posições elevadas em instituições privadas e públicas, mora em bairros com melhor infraestrutura, conta muito regularmente com maior poder aquisitivo, são os clientes mais habituais de clubes, hospitais de ponta e escolas particulares, e não são alvos diletos da polícia. Essa situação é internalizada a partir da concepção de “mérito”; um conceito sem tempo ou espaço social, perpetuado de geração em geração, sem que o grupo leve em consideração os diferentes contextos históricos, políticos e sociais em que se inseriu e se insere, e que fizeram com que, muitas vezes, ocupasse a posição de vantagem estrutural. A branquitude também cria padrões de beleza e de sociabilidade, ao mesmo tempo que é grande produtora de imagens e, portanto, de imaginários nacionais. Estes, à sua maneira, e como veremos neste livro, ajudam a estabilizar esse cenário — como se fossem naturais.

Paradoxalmente, a branquitude, enquanto representação social, conforma uma sorte de “invisibilidade” que não gera reflexão sobre si. Transforma-se, pois, na norma que não precisa ser nomeada, que classifica e estuda os “outros”, e que, não obstante, não é classificada — uma forma confortável de ser e estar na sociedade. A despeito de a sociedade branca ser uma categoria relativa, já que atravessada por outros marcadores sociais de diferença como raça, gênero/sexo, região, geração e classe social, pertencer a ela em geral significa uma espécie de passaporte de privilégio. Branquitude não é, porém, uma categoria de reconhecimento por parte do próprio grupo, que não costuma se autoidentificar dessa maneira, ao passo que o conceito de negritude corresponde a uma conquista: a um movimento social, político e cultural identitário. Enquanto a branquitude é uma condição social experimentada em várias nações de passado escravocrata e ainda hoje marcadas pelo racismo, ela se encontra particularmente enraizada no Brasil, país onde a população negra — composta pela soma das categorias do IBGE, pretos e pardos — representa 55,5% do conjunto de habitantes. As pessoas negras conformam, portanto, maiorias numéricas, mas são minorias na representação social, política e cultural. São, pois, “maiorias minorizadas”. Foi na conta dessa circunstância consolidada pela história oficial nacional, e da produção acelerada de mitos que envolvem o tema da mestiçagem racial, que, durante muito tempo, pessoas brancas não acharam relevante problematizar seu lugar social, ou se reconhecer a partir de tal concepção. Hoje vivemos outros tempos: de letramento racial. 

Neste livro, escrito por uma pesquisadora branca, falar sobre o conceito de branquitude não funciona em absoluto como categoria de acusação, questão moral ou normativa, nem ele se dirige a certos indivíduos ou situações em particular. A branquitude é entendida como um fenômeno histórico vivido, subjetiva e internamente, de maneira mais ou menos consciente, pelo grupo social que é assim externamente definido. Reconhecer a existência da branquitude, suas representações e impactos sociais é, portanto, um desafio para essa sociedade que carrega a utopia de se constituir como uma democracia plena mas que ainda precisa enfrentar o racismo estrutural que organiza suas relações.