A filósofa norte-americana Judith Butler (University of California, Berkeley/Reprodução)

Ciências Sociais,

Filósofa-problema

Judith Butler retoma o tema dos estudos de gênero, que a tornou alvo de conservadores no Brasil

05jun2024
A filósofa norte-americana Judith Butler (University of California, Berkeley/Reprodução)

Quem tem medo de Judith Butler? O nome da filósofa causa tanto temor quanto o conceito de gênero, arriscaria dizer. Butler é uma das mais relevantes pensadoras deste século e sua obra impactou as epistemologias feministas, as noções modernas de sujeito, natureza, cultura, linguagem e parentalidade. Suas proposições são discutidas em todo o mundo e sempre fazem tremer os saberes dogmáticos, onde quer que os confrontem.

Em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Judith Butler se consagra, logo de partida, como uma pensadora rígida, metódica, culta e uma boa provocadora. Eu a chamaria de a filósofa do problema, afinal, em seus textos ela mais nos provoca do que nos oferece saídas. Não à toa, numa passagem, a autora faz um elogio a criar problemas, a saber como criá-los.

Publicado no Brasil em 2003, o livro se transformou numa publicação quase canônica no campo dos estudos de gênero. Hoje é impossível estudar, pesquisar ou tentar entender gênero, identidade e sexualidade sem ter contado com o pensamento de Butler. Suas discussões são de tal modo inovadoras que seu pensamento se tornou base de uma revolução epistemológica no campo dos estudos gays e lésbicos, a teoria queer, que percebe a força do pensamento desnaturalizador de Butler e a eficácia do conceito de performance/performatividade

Queimada como bruxa

O impacto do título fez com que a filósofa representasse para uma infinidade de reacionários a própria noção de gênero. No Brasil, recebeu a alcunha de “mãe da ideologia de gênero” e, como tal, se tornou alvo de todo tipo de perseguição. Quando veio ao ao país em 2017, teve sua imagem impressa em grandes cartazes e queimada como bruxa, enquanto militantes conservadores do Movimento Brasil Livre, o MBL, gritavam: “Bruxa!”, “Fora!”, “Deixem nossas crianças em paz!”.

Butler viera ao Brasil para falar de “Democracia e vulnerabilidade”, não sobre gênero, feminismo ou sexualidade. Na verdade, ela tinha direcionado sua obra por outros caminhos: a questão judaica, luto, não violência, alteridade, assembleias públicas. Era ainda uma filósofa-problema, mas não era mais uma filósofa do gênero, exclusivamente.

A autora ressalta o caráter profundamente anticapitalista das lutas sexo-gênero dissidentes

Quem tem medo do gênero? representa um retorno de Judith Butler à temática de gênero desde os anos 90. Nas suas quase trezentas páginas, veremos a autora debater questões contemporâneas que estão muito distantes daquelas que analisou em obras anteriores.

Para além disso, essa não é mais uma obra acadêmica de Butler; ao contrário, é militante, ativista, de uma intelectual que escolhe analisar o presente, pôr em questão as mentiras que pervertem a vida no presente. Ao mesmo tempo, tenta entender quais os ingredientes dessa figura fantasmagórica que se tornou o termo “gênero”. Nas palavras da autora:

Será que é sequer possível dizer quantos dos medos contemporâneos se concentram no terreno do gênero? Ou explicar como a demonização do gênero encobre e desvia a atenção das ansiedades legítimas quanto à destruição climática, à precariedade econômica intensificada, à guerra, às toxinas ambientais e à violência policial? — medos de que, sem dúvida, temos razão em sentir ou cogitar?

Ela argumenta que o gênero se transformou num amálgama dos medos contemporâneos. Como se todo o temor de sumir, de se perder, de que o mundo deixe de fazer sentido estivesse concentrado nesse demoníaco termo ou em sua variante mais comum, a “ideologia de gênero”.

A constituição de uma militância antigênero ocupa um amplo espectro político: a direita cristã, os nacionalistas, puritanos de modo geral, feministas radicais, na esquerda e na direita. Há sempre uma poderosa alegação, dirá Butler, que está no centro do discurso desses movimentos: a destruição da infância e das crianças. O poder dessa alegação está em por em risco para a maioria dessas pessoas o seu próprio futuro ou o futuro de seus filhos, como explica:

O medo de que as crianças sejam prejudicadas, o medo de que a instituição familiar ou a própria família da pessoa seja destruída, de que o homem seja derrubado, incluindo os homens e o homem que alguns de nós somos, de que um novo totalitarismo esteja se impondo a nós…

Nem todos no espectro antigênero recorrem aos mesmos argumentos. Feministas radicais, por exemplo, organizam os seus no combate às questões de gênero que remetem à população trans e travesti, enquanto fundamentalistas evangélicos incluem em sua retórica a condenação do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em geral.

Butler ressalta — e essa é uma das grandes contribuições do livro — que se criou um dispositivo fantasmático que organiza e captura medos ontológicos e os converte em conservadorismo e reacionarismo antigênero.

Quem tem medo do gênero? apresenta, de maneira inquietante, outras facetas de Butler: irônica, investigativa, simples. É possível reencontrar um pouco da menina que foi expulsa da escola aos quatorze anos e teve que estudar com o rabino.

Quem teme a pensadora? Certamente todos aqueles que insistem em identidades estáveis, binárias e naturais como verdades. Têm medo de Butler os conservadores de sempre e os de ocasião. As feministas apegadas à diferença sexual. Os homossexuais assimilados e puritanos. Aqueles que a temem são os que rejeitam um mundo em constante transformação, que se dá pelos atos cotidianos de subversão, repetidos ao longo do tempo.

Exemplo disso é a reação, nas redes sociais, ao lançamento deste livro. Milhares de comentários ofensivos, depreciando a autora, manifestando ódio contra ela e a editora — uma rejeição que não exclui nem mesmo setores da esquerda.

Butler articula o presente, dialoga com militâncias e ativismos mundo afora. Ressalta o caráter profundamente anticapitalista das lutas sexo-gênero dissidentes. Lida com as questões do aqui e do agora. Trata-se de uma leitura importante para desmantelar os fantasmas do presente e não nos deixarmos enganar pelo vocabulário progressista que algumas forças conservadoras assumem vez ou outra. Sem medos.

Quem escreveu esse texto

Helena Vieira

Filósofa, transfeminista e escritora, é colunista da revista Cult.

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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