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Quem quer ser professor?

Biografia de professora de química é uma defesa das escolas e uma homenagem a quem ganha a vida na sala de aula

01ago2019 | Edição #25 ago.2019

Qual o interesse em saber sobre a vida de uma professora? O ofício docente, mais especificamente o da docência em escolas, não está exatamente no rol das ocupações que geram grandes fortunas ou trazem enorme prestígio social. A história de uma professora é, geralmente, uma história anônima e repetitiva: ano após ano, o mesmo “bom dia”, a apresentação do curso para as turmas que chegam, as despedidas das turmas que vão; dia após dia, a data na lousa, o tema das aulas, as explicações, os exercícios, a socialização,  os experimentos, o planejamento de aulas, as avaliações, as broncas e as congratulações. A lousa cheia e vazia, com parte do dia conduzida pelos turnos, horários das aulas e sinais que batem. A história de vida de uma professora dificilmente rende monumentos, feriados públicos, fanfarras. Talvez se perca em meio aos diários de classe e às marcas da caneta vermelha em provas e cadernos.

O livro Lucy, uma vida professora conta uma história comum e, ao mesmo tempo, extraordinária. De uma professora. Uma professora séria, rígida e rigorosa. Uma professora que marcou profundamente a vida de muitos que foram seus alunos, influenciando, inclusive, escolhas profissionais e condutas existenciais. Uma vida que se construiu na sala de aula, vestindo um guarda-pó branco sobre a roupa e segurando um giz antialérgico na mão. Uma vida voltada ao ensino de química e que seus alunos quiseram narrar.

Ser professora foi uma escolha de Lucy, e também uma necessidade: as circunstâncias do divórcio impunham a necessidade de um trabalho que lhe permitisse sustentar e cuidar dos três filhos — mal sabia ela que, entre correções e preparações, o meio período de aulas iria se transformar em turnos de dias inteiros, que adentrariam noites e madrugadas ao final dos bimestres. E quantas mulheres não precisam conciliar a vida como mães e trabalhadoras, equilibrando-se nesse limiar que, tantas vezes, se faz excludente? 

O que os alunos não esquecem, principalmente, é o amor por aquilo que se ensina 

Para contar a história dessa professora, Jayme Serva — ex-aluno de Lucy — nos leva ao final do século 19, até as expedições da Comissão Geográfica e Geológica pelos rios Feio, do Peixe, Tietê e Paraná no sertão paulista, terras inexploradas e muitas vezes habitadas por comunidades indígenas ainda não contatadas pelo homem branco. Guilherme Wendel, avô de Lucy, era um dos engenheiros do grupo que percorreu o rio Tietê e seguiu a vida se embrenhando por matas e rios, fazendo medições e apontamentos. Silvano, filho de Wendell, casou-se com Placídia, e dessa união nasceu Lucy Sayão Wendel, que ouvia, atenta, as histórias que aquele avô — que sabia mais de sete línguas e havia andado entre índios e caiçaras — contava.

Nascida em 5 de agosto de 1924, ela cresceu junto com a cidade de São Paulo, e Jayme Serva trança os caminhos de Lucy e de sua família à história da cidade, como um bom professor, que vai do particular ao geral, do cotidiano às grandes marcas da história. Jayme conta que Lucy, em suas aulas, fez isso também — duas vezes por semana, durante três anos —, ao falar da tabela periódica e do xampu que todos tinham em casa.  Lucy foi professora por 49 anos e ainda hoje, aos 95, segue explicando química aos netos e bisnetos, ajudando os amigos a pensar estratégias de ensino e escolhas curriculares.

Então, a partir de uma foto que apareceu em um encontro de ex-alunos do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, na qual estavam Lucy e mais outras professoras do colégio — duas ainda na ativa —, veio a vontade: a história da vida dessa mulher merece ser contada. E esses ex-alunos financiaram a pesquisa de Jayme para realizar a obra. É um livro que comove e vai além do interesse daqueles que, porventura, foram alunos de Lucy ou a conheceram. Porque ao narrar uma vida, uma vida professora, narram-se também os processos de formação de uma cidade, de uma família, de uma escola. Professora não como substantivo feminino, mas como adjetivo, qualidade de uma vida que ensina ela mesma, fora e dentro da sala de aula. 

Luta diária

Enquanto Lucy crescia e se via formada, casada e mãe divorciada, São Paulo expandia seus territórios, a empresa de energia elétrica e transporte de bondes Light traçava a geografia da cidade em novos bairros e lotes, e dois padres canadenses chegavam a São Paulo com vontade e habilidade para construir uma escola. O livro conta, então, o nascimento do Colégio Santa Cruz e a vida e o percurso dos padres canadenses que o fundaram. Além disso, também homenageia outros grandes educadores que, mais do que passar por ali, fizeram daquela escola uma segunda casa, um lugar de identidade e luta e uma referência importante na história da educação. Um professor sozinho pode fazer pouca coisa. A educação se faz coletivamente, e é tocante saber das vidas e princípios que construíram o colégio. Foi no Santa Cruz que Lucy achou sua casa e onde seguiu até se aposentar, sempre em sala de aula.

E pelo que lutou Lucy? Pelo que lutam os professores? Pela autonomia, pela dedução, pela compreensão dos elementos químicos que possibilitam a vida. O autor recorda uma aula sobre o lítio, um elemento químico da tabela periódica, que traz em seu núcleo três prótons, três elétrons — um elemento “pequeno entre os já infinitesimais” — e que, apesar de ser diminuto, não é nada trivial. Porque pode reger manifestações de humor e emoções, sendo usado no tratamento da depressão. Lucy, pequena entre os já infinitesimais educadores, contou, então, que tinha uma pessoa na família que fazia uso desse medicamento.

O espanto e, ao mesmo tempo, a curiosidade: a professora tem também uma vida particular, familiares, questões. A professora Lucy lutou não somente pelo aprendizado de seus alunos e alunas, mas também pela saúde de seus filhos e pelo bem-estar de todos na família, numa vida difícil e repleta de desafios que o autor narra com delicadeza e cuidado.

Uma das marcas de Lucy, uma mulher de baixa estatura, mas de maneira nenhuma intimidada, era o rigor. E o que nos ensina uma professora rigorosa? Quais são as marcas de um grande professor que ficam impressas em nossa vida e das quais lembramos e nos miramos ao longo do caminho?

Mais que brilhantismo, habilidade, capacidade de desenhar um círculo perfeito na lousa, idiossincrasias bestas ou grandes, o que os alunos não esquecem são a justiça, a coerência, o humor, o fio tênue construído entre a democracia e a autoridade, e principalmente o amor por aquilo que se ensina. Na sala de aula, Lucy combateu não somente a depressão, mas também o mimo, o egocentrismo, o comodismo e a letargia, semeando curiosidades, buscas, métodos e caminhos. 

Infinito particular

Os professores somos todos pequenos e infinitesimais. Conjuntos de células, átomos na galáxia das formações das vidas. O livro que conta a vida professora de Lucy é, afinal, um livro de homenagem, não somente à professora específica que foi Lucy, mas ao ofício de professor, às marcas tentaculares que um bom docente deixa em seus alunos, por vezes gratos e queridos, outras vezes nem tanto, mas não é isso o mais importante. Ao final, o livro é uma defesa da professora, não apenas daquela extraordinária como Lucy, mas de todas.

O livro é também uma defesa das escolas como um todo. Lucy, de certa maneira, foi uma professora bastante privilegiada, já que teve a oportunidade de passar muitos anos em uma única instituição que deu — e dá — estrutura e condições de trabalho que permitem ao professor se realizar na profissão. Quantas Lucys não há por aí, mães, mulheres batalhadoras, sábias e bem formadas, generosas e rigorosas, preocupadas com o ínfimo (às vezes, ser professora é ensinar um aluno a apagar bem o lápis ou traçar uma linha reta) e também com o grande (às vezes, ser professora é acompanhar a origem e a formação do universo), lutando em condições bem mais adversas?

Nestes dias em que a escola é vista como espaço de doutrinação, a história de Lucy é um ensinamento

Nos dias que correm, um livro como este alcança também um novo patamar de importância e urgência. Dias em que a ideia da escola como espaço de pensamento crítico, de construção da cidadania, da empatia e da aceitação da diferença tem sido apresentada como doutrinação e mesmo inutilidade. Dias em que se incentiva a filmagem de professores em sala de aula, tendo por pano de fundo a acusação e a vigilância contra supostas doutrinações. Nestes dias, a história de uma professora como Lucy é, ela mesma, ensinamento.

A escolha pelo ofício não é feita  por necessidade de salário e tempo livre, e talvez tenha a ver com uma certa vocação. Também está relacionada a condições de trabalho que têm a ver com salário, tempo e estrutura,  a existência de boas escolas e a crença na promoção do conhecimento, na formação ampla e rigorosa do ser humano, na diversidade, na discussão.

Nas manifestações pela educação em maio deste ano, havia um cartaz que perguntava: “Quem vai querer ser professor?”. A história de Lucy nos dá vontade de seguir sendo professores. Não somente em escolas particulares de bairros abastados da cidade de São Paulo, mas em todas as escolas do Brasil. Resta saber se serão dadas condições para isso.

Quem escreveu esse texto

Luana Chnaiderman de Almeida

Escritora e professora, é autora de Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva).

Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.