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A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras

MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

O escritor português Afonso Cruz (Paulo Sousa Coelho/Divulgação)

A FEIRA DO LIVRO 2025, Encontro de Leituras,

Para famintos de palavras

Novo livro de Afonso Cruz, Dieta da poesia nutre e embeleza a vida, mas é também excessivamente didático

01jun2025 • Atualizado em: 04jun2025 | Edição #94

Histórias, há muitas. Há quem tenha feito a dieta dos dinossauros, quem tenha se abstido de leite, ficado a base de carnes e vegetais ou quem tenha comido somente aquilo que caiu de árvore. Há o jejum da lua, o chá emagrecedor, a dieta cetácea e a mediterrânea. Sem contar, é claro, a possibilidade de ficar sem comer, em intervalos cada vez maiores, na prática do jejum intermitente — que, segundo dizem, traz também foco e inteligência àqueles que o praticam. Entretanto, entretanto, talvez nenhuma dieta traga os benefícios acumulados que traz a dieta da poesia, inventada por António de Lousada, o Bazulaque.

Doces e poemas

São duas, ou três, as histórias que fazem nascer Dieta da poesia, novo livro do escritor português Afonso Cruz, que estará n’A Feira do Livro 2025. A busca de Maria, a viagem de Piedade, e a história do emagrecimento de Lousada, o Bazulaque, nome dado por seu peso excessivo. Fui ao dicionário e aprendi que bazulaque é um indivíduo muito gordo e baixo, ou que come sôfrega e sujamente. Variação de badulaque, palavra que designa cacarecos, mas também ensopado de vísceras. E, também, homem gordo e doce de coco ralado e mel.

Enfim, Bazulaque era um indivíduo incapaz de resistir. Não só a peixe frito, mas a “tudo aquilo que pode ser ingerido com talheres ou sem talheres, com as mãos ou mesmo sem as mãos, frio, morno, quente, ácido, doce, azedo, salgado, bem confeccionado, mal confeccionado, cozinhado ou cru”. E devido à sua incapacidade, era gordo, gordo a ponto de precisar de três cadeiras para se sentar, e assim ia vivendo a vida.

Entre as muitas histórias, não é a história da dieta a mais interessante nesse livro de dieta

Até que um pote de bolachas, guardado no alto da estante, deu início à história toda. Bazulaque viu-se obrigado a subir os degraus da biblioteca de casa a fim de alcançar os doces. Alcançou as bolachas e, no caminho, tinha um livro. No livro, um poema. Comeu as bolachas, mas enquanto comia, leu. E continuou lendo, enquanto comia, lia e lia e não parava mais de ler. Foi emagrecendo, capaz de dizer não, prestando mais atenção às palavras no papel que ao açúcar no bom-bocado.

E um dia veio o chamado de outro livro, na estante mais alta. E se da outra vez os livros levaram ao doce, desta foram os doces (ele se equilibrou na jarra de bolachas, em cima da cadeira) que levaram ao livro de poesia erótica. Leu, e agora não mais lia enquanto comia, mas comia enquanto lia, e isso, caras leitoras e leitores, faz toda a diferença no processo de emagrecimento.

Fora o caminhar, atividade absolutamente necessária para se digerir os poemas lidos, interrompida somente para momentos de escrita que também começaram a aparecer. Entretanto, entretanto: entre as muitas histórias, não é a história da dieta a mais interessante nesse livro de dieta.

Porque há a história da viagem de Piedade, e a da Coleção de Selos Ho. Mas para falar delas preciso primeiro explicar que Bazulaque foi lendo, emagrecendo, e lendo tanto que logo se tornou também escritor e leitor das cartas que o povo trocava pelo correio da cidade. E, de escritor, logo virou inventor, criando as histórias, amainando raivas, mudando conteúdos — sim, como no filme Central do Brasil e também no conto “A saúde dos doentes”, do Cortázar, em que o filho morre e todos criam cartas desse filho, para que a mãe nunca saiba que ele morreu.

Didatismo

Histórias, há muitas, e são muitas as histórias que enlaçam uma história. A grande questão é a maneira de contá­-las, e aqui o livro de Cruz é, a um só tempo, engraçado, comovente e excessivamente didático. Ao mesmo tempo poético e demasiado explicativo, o que acaba engordando um pouco a prosa. Um exemplo:

Estava o Bazulaque sentado a lanchar com o tio de Cristelos, Boim e Ordem, que, ao remexer no bolso do casaco, encontrou um pequeno envelope ainda selado, o que é isto, perguntou-se. Intrigado, o tio abriu-o, leu o seu conteúdo e coçou a cabeça. Voltou a pôr o papel no envelope, que amarrotou na sua mão de lavrador, e atirou-o para o chão (na época atiravam-se coisas para o chão, embora isso ainda hoje se faça muito com a cultura), sacudiu algumas migalhas do casaco e recostou-se à espera que o sobrinho acabasse de lanchar.

Este é o começo de uma história muito legal. A história do papel que está dentro do envelope que o tio de Bazulaque quis jogar ao chão. Dentro do envelope estava um poema, e não um poema qualquer, um poema que, mesmo que ruinzinho, tinha muito valor: mais que declaração de amor, o poema nunca entregue, em envelope jamais aberto, era um pedido de casamento. Morando para sempre no bolso do terno usado que o tio havia comprado.

O exemplo de explicação excessiva está nos parênteses. Deixar a história falar por si é uma arte. Se não houvesse esses parênteses explicativos (o que acontece bastante no livro) nos apontando: “olha só, quantos e quantas não jogam, até hoje, a cultura amassada ao chão”, nós, leitores, poderíamos pensar algo assim, ou até mais, sozinhos. E nos empolgaríamos ainda mais com a decisão de Louzada de fazer chegar o bilhete ao seu destino e procurar, entre as muitas Marias, aquela a quem o pedido nunca chegou.

Anti-Bartleby

Bartleby é o famoso escrivão que diz “acho melhor não” a tudo na novela Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street, de Herman Melville. Copista, Bartleby tinha sido, antes, encarregado do setor do correio responsável por dar cabo das cartas perdidas, nunca entregues. Se sua profissão atual era a da cópia sem fim de documentos em uma mesa de Wall Street, talvez a função anterior tenha sido pior ainda.

Bartleby havia sido um funcionário na Seção de Cartas Extraviadas em Washington, da qual fora afastado repentinamente por conta de uma mudança na administração. […] Cartas extraviadas! […] pode qualquer trabalho parecer mais adequado para aumentar essa desesperança do que lidar continuamente com essas cartas extraviadas […] Com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte. Ah, Bartleby! Ah, humanidade!

Bazulaque é uma espécie de anti­-Bartleby. Diz sim. Sim à vida, à invenção, aos laços, quer andar e achar a Maria a quem o pedido nunca chegou.

Quer também criar outro destino à menina Maria da Piedade, e em vez de ler ao pai a carta relatando o falecimento da filha, inventa que a menina Piedade está passando as férias no vale do Loire, na França. Acha um artista que topa desenhar selos e faz Piedade aventurar-se pelo mundo, contando as histórias mais lindas para o pai, que morre mais feliz.

Se Bartleby, de recusa em recusa, vai se fechando cada vez mais, até terminar encolhido, sonhando com reis, em um asilo, recusando comida e qualquer comunicação, Lousada embeleza, distribui e cria histórias bonitas que, mesmo se ficcionais, trazem alívio e alento. Emagrecem e embelezam.

As lacunas e as angústias nos fazem humanos e é também dessa matéria que se faz a poesia

E talvez aí também esteja outra questão, de fundo, do livro de Cruz. Será que a poesia e a literatura são assim injeção de ânimo? Deixam-nos todos mais belos, ou pelo menos mais rosados, rodeados por uma aura de irresistibilidade? Aí já não sei. A questão está mais perto dos ossos que da camada adiposa: a poesia, ela não apazigua. Ela movimenta, causa espanto e crise, e talvez alguma desestruturação.

Então esta resenhista talvez tenha se ressentido um pouco de um excesso de alegria relacionado aos poderes da poesia que atravessa, mesmo se com ironia, o livro inteiro. Ou talvez esteja dizendo besteiras. Sou professora de escola e quando li Bartleby com os alunos do nono ano, metade da turma ficou deprimida. E quando a leitura foi seguida pelas Memórias do subsolo, do Dostoiévski, fizeram uma greve e criaram o movimento Professora, Queremos Livros Felizes.

O livro de Cruz é um livro para cima. Com metodologia comprovada de dieta emagrecedora e embelezadora:

Quando sentir vontade de emborcar uma travessa de batatas fritas, em vez disso, abra o livro e leia um poema. Sempre que se sentir tentado a comer alguma coisa entre as refeições, especialmente comida processada, hidratos de carbono, gordura trans ou nutrientes brancos, não coma, pegue no livro e leia. Os resultados são impressionantes. Leia, pela sua saúde.

Ao final, além de estudos científicos, há testemunhos da eficácia do método: “Fantástico! Ao fim de um mês tinha perdido cinco quilos e estava íntima de Dylan Thomas”.

Vamos nos divertir, mas as lacunas e as angústias também nos fazem humanos e, afinal, é também desta matéria que se faz a poesia e toda a fome que (ainda) temos dela.

A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Luana Chnaiderman de Almeida

Escritora e professora, é autora de Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva).

Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025.